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domingo, 3 de abril de 2016

Algumas incomodações da Bíblia



"Se alguém ferir seu escravo ou escrava com um pedaço de pau, e como resultado o escravo morrer, será punido; mas se o escravo sobreviver um ou dois dias, não será punido, visto que é sua propriedade." (Êxodo 21:20-21; NVI)

A Bíblia é para mim um best-seller que faz pensar. Não a leio sem elaborar os devidos enquadramentos de valores, buscar uma compreensão contextual e raciocinar explorando cada lacuna deixada pelo escritor sagrado. Quer se trate de uma intrigante parábola contada por Jesus, de uma narrativa mítica do livro de Gênesis ou de um princípio da legislação de Moisés, procuro encontrar um sugestivo espaço para saudáveis questionamentos capazes de proporcionar uma maior edificação. Até o Apocalipse de S. João, por mais absurdo que às vezes pareça, ajuda-me a compreender a extensão do fanatismo religioso quando levado ao extremo do sectarismo.

Considero um equívoco alguém querer julgar qualquer literatura antiga conforme os valores do presente. Os que perdem tempo atacando a Bíblia, quando dizem ter Moisés legitimado a escravidão, a poligamia masculina, as punições cruéis e as guerras santas, por exemplo, estão chovendo no molhado. Até mesmo porque tais situações já existiam anteriormente àquela época, mas foram inspiradamente repensadas pelo grande legislador hebreu dentro de uma visão mais progressista de quem acabara de libertar-se da escravidão egípcia  e precisava regular a complicada vida social na nova terra a ser conquistada.

Obviamente que as ordenanças do Código da Aliança do livro de Êxodo guardavam fortes semelhanças com as leis das cidades da Mesopotâmia elaboradas séculos antes, de modo que qualquer uma delas pode ser tratada como um material pronto e acabado. Os princípios, porém, por serem normas superiores em qualquer diploma jurídico, constituíam a verdadeira base ética para a adequada interpretação, aplicação prática e atualização dentro do antigo Direito hebraico.

É certo que até os mitzvot do Decálogo constituem expressões desses princípios superiores da legislação de Moisés, os quais os sábios judeus contemporâneos de Jesus passaram a resumir através da universal Regra de Ouro. Não muito diferente do que consta no célebre Sermão da Montanha, o ancião Hilel (c. 60 a.e.c. - 9 e.c.) já ensinava a ética da reciprocidade, englobando os seis últimos dos Dez Mandamentos:

"Não faças aos outros aquilo que não gostarias que te fizessem a ti. Essa é toda a Torá, o resto é a comentário; agora ide e aprendei".

Contudo, podemos também partir da parte para o todo. Ou seja, estudarmos cada uma dessas orientações bíblicas, por mais ultrapassadas que sejam para a nossa era de pós Iluminismo, a fim de chegarmos a algum aprendizado importante. E aí precisamos analisar as Escrituras com bons olhos para não cairmos num criticismo inútil de modo que o "temor do Senhor" (a reverência) torna-se condição necessária para o desenvolvimento do saber.

Na citação feita acima, posso dizer que a Lei de Moisés foi consideravelmente avançada para a sua época. Isto porque já existia uma brutal violência dos senhores contra os escravos e o mandamento dado estabelece não somente limites ao poder de punir/castigar o serviçal como também reconhece o direito à vida de quem não se encontrava em liberdade. Mesmo se fosse um estrangeiro adquirido para o trabalho braçal.

Assim, se levarmos em conta a regra geral estabelecida para o homicídio doloso (Ex 21:12),o golpe mortal praticado pelo senhor provavelmente implicasse na imposição da pena de morte contra este (San'hedrin 52b; Rashi). Mas, se o escravo demorasse a ir a óbito, sobrevivendo um dia ou dois, o dono apenas sofria a perda de quem era considerado como sua propriedade.

Aprofundando a análise sobre a questão, observo uma lacuna que deveria ser a dificuldade de se descobrir na época a causalidade dos fatos já que os conhecimentos sobre Medicina eram bem limitados se comparados com a atualidade. Ou seja, não havia como saber se o ferimento fora causa exclusivamente direta ou não da morte da vítima e aí, como a pena prevista para uma lesão grave ao escravo era a alforria (Ex 21:26-27), a agressão cometida pelo senhor já estava punida por sua própria ação injusta.

Sem dúvida estamos falando de um tempo terrivelmente desumanizado em que as relações eram bem piores do que as atuais, muito embora tenhamos experimentado também alguns retrocessos ao lado dos avanços. Então, para frear a dureza de coração das pessoas, foi necessário não só uma legislação que estabelecesse limites aos poderes dos senhores em castigar seus escravos como também a instituição de juízes idôneos capazes de aplicá-la. Tanto é que, conforme as circunstâncias do caso, o fato do escravo sobreviver um só dia não seria suficiente para afastar a punição prevista de modo que, por óbvio, caberia ao magistrado analisar a causalidade exclusiva entre a agressão e o óbito.

Em nossa realidade de hoje, muito mais dinâmica e complexa, o intérprete das leis (e dos fatos) continua tendo a mesma importância em relação à Antiguidade. Conforme Jetro havia aconselhado ao seu genro Moisés, os juízes deveriam ser "homens capazes, tementes a Deus, dignos de confiança e inimigos de ganho desonesto" (Ex 18:20). E aí mais do que nunca podemos abrir mão da boa formação ética dos operadores do Direito de maneira que, antes mesmo do ingresso nas faculdades, o aluno precisaria receber um ensino de moral e civismo exemplar na escola básica. Afinal, não basta termos magistrados, promotores e advogados capacitados quanto à aplicação da lei. Tais profissionais precisam ser honestos!

Por mais que a leitura bíblica seja considerada inútil por diversos ateus, agnósticos e secularistas, prefiro não tirar as Sagradas Escrituras de minha vida. Trata-se do grande tesouro recebido dos nossos ancestrais espirituais, as quais, como bem lembra o Salmo 1º, torna bem-aventurado o homem que, com prazer, nelas "medita de dia e de noite".

Uma ótima semana a todos!


OBS: Esse texto eu o publiquei nesta data no blogue da Confraria Teológica Logos e Mythos, sendo que a foto acima refere-se à escultura de Moisés feita por Michelangelo Buonarrotti (1475 — 1564), com os créditos autorais à Patricio Lorente, conforme consta no acervo virtual da Wikipédia em https://pt.wikipedia.org/wiki/Direito_hebraico#/media/File:Moises.jpg

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