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segunda-feira, 24 de março de 2014

O poder de uma pregação louca



"Certamente, a palavra da cruz é loucura para os que se perdem, mas para nós, que somos salvos, poder de Deus." (1ªCo 1:18; ARA)

Em sua primeira carta à igreja em Corinto, o apóstolo Paulo considerou a mensagem da cruz como "loucura", do ponto de vista dos homens impenitentes, levando em conta as opiniões dos que eram tidos como sábios em seu tempo. Principalmente entre os gregos que, notadamente, foram os grandes filósofos e conhecedores da ciência na Antiguidade.

Nós que nascemos num país de cultura cristã e vivemos cerca de dois milênios após Paulo ter viajado pelas províncias orientais do Império Romano, durante as corajosas missões evangelísticas que empreendeu, já nem fazemos ideia de quanto a mensagem do apóstolo poderia parecer estúpida ou absurda aos ouvidos de um grego culto naquela época. Pois, sendo eles pensadores racionalistas, não conseguiam aceitar facilmente a ideia de que Deus tivesse enviado o seu Cristo a esse mundo a fim de morrer pregado numa cruz trazendo-nos salvação. Daí o autor sagrado assim escrever conforme lemos na mesma versão e tradução da Bíblia acima citada:

"mas nós pregamos a Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gentios; mas para os que foram chamados, tando judeus como gregos, pregamos a Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus." (1ªCo 1:23-24)

Volto a perguntar. Por que o Messias crucificado seria "escândalo" para judeus e "loucura" para os gentios?

Para os judeus contemporâneos do apóstolo a vergonhosa morte sacrificial de quem foi apresentado como o Ungido virou um tropeço, uma casca de banana que desviou inúmeros israelitas da liderança de Jesus, obscurecendo o entendimento de muitas pessoas sobre as coisas que Deus fez naqueles últimos anos da era do Segundo Templo. Pois, em seu desejo triunfalista, aquela geração talvez aguardasse o envio de alguém capaz de restaurar a soberania de Israel e libertar a nação do domínio estrangeiro dos romanos. A interpretação que muitos mestres do primeiro século faziam das Escrituras não admitiria um Cristo aparentemente fracassado e morrendo como se fosse um "amaldiçoado" ou "desamparado" por Deus. Para os tais, Jesus só seria aceito como um líder caso alcançasse êxito segundo os padrões que tinham estabelecido quanto à manifestação do Mashiach.

Em relação aos gregos, porém, estes ignoravam as Escrituras hebraicas e, consequentemente, as promessas reveladas pelos profetas de Israel ao povo judeu. Nenhum dos livros daquilo que a Igreja ainda chama erroneamente de "Antigo Testamento" fazia sentido para os gentios até eles ouvirem a pregação do Evangelho. Pois tinham construído uma visão de mundo oriunda do politeísmo e que se desenvolveu através da reflexão racional em busca do conhecimento. Para os gregos cultos era como se o poder estivesse no saber. Acreditavam que pela cognição do intelecto homem encontraria salvação, tornando-se então pleno, satisfeito, perfeito, harmonizado e saudável.

Sendo assim, o livro de Atos mostra-nos uma situação ocorrida quando Paulo esteve só entre os antigos atenienses e foi convidado para discursar no Areópago que era um local de reuniões públicas comunitárias situado numa colina da cidade. Ali o apóstolo precisou primeiramente expor a sua concepção sobre a Divindade afim de lhes explicar o propósito da vinda de Jesus mencionado na pregação apenas como "um varão" destinado por Deus (At 17:31). E, ao falar da ressurreição de Cristo, o público passou a ridicularizá-lo com irreverência. Certamente porque, estando ensoberbecidos, não aceitavam a ideia de que alguém, após ter sido morto, pudesse se tornar instrumento de justiça divina no mundo.

Quantos escárnios Paulo e outros pregadores não devem ter enfrentado quando ousaram anunciar o Evangelho na Grécia dos primeiros séculos?! Fico a imaginar o que se passava pela cabeça dos arrogantes ouvintes, os quais mostraram-se por isso incapazes de se esforçar um pouco para compreenderem o sentido do novo que lhes era anunciado. Pois creio que intimamente pensassem mais ou menos desse jeito acerca de Paulo:

"Como esse maluco acha que nos convencerá a crer nesse Jesus que ele diz ser um escolhido? A argumentação do sujeito é desprovida de lógica! Pois se alguém foi morto, tal pessoa não tem poder para fazer mais nada neste mundo. Mortos, como sabemos, não resolvem coisa alguma, não falam mais, nem podem tomar decisões e menos ainda tornam a viver. O tal do Jesus simplesmente já era! Nossos ouvidos já escutaram o bastante. Chega! Vamos mandar esse cara estúpido plantar batatas..."

É provável que essa foi a grande dificuldade enfrentada por Paulo entre os gregos. Principalmente quando ele se encontrava diante de um público mais culto cuja expectativa insaciável restringia-se a receber mais conhecimento intelectual. Daí o cristianismo dos primeiros séculos ter se tornado a religião dos pobres, dos analfabetos, das mulheres (estas ainda não tinham o mesmo acesso ao saber que os homens da sociedade), dos escravos e dos demais grupos de pessoas desprezadas ou esquecidas. Senão vejamos o que consta na epístola paulina em comento:

"Irmãos, reparai, pois, na vossa vocação; visto que não foram chamados muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de nobre nascimento; pelo contrário, Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes; e Deus escolheu as coisas humildes do mundo, e as desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são; a fim de que ninguém se vanglorie na presença de Deus" (1ªCo 1:26-29)

Ora, seriam tais palavras pura demagogia do escritor bíblico afim de justificar por que as pessoas instruídas e tidas como inteligentes não costumavam aceitar a fé cristã naqueles tempos? Ou a arrogância do indivíduo não teria o condão de obscurecer a reflexão dos "inteligentes" a ponto destes desprezarem a existência de outros aspectos do saber que se encontrem além das áreas do raciocínio natural do homem?

Pois bem. No capítulo 2 da epístola conseguimos entender melhor o motivo pelo qual a "mensagem da cruz" nem sempre é aceita pelos ouvintes uma vez que seria algo a ser descoberto espiritualmente. Trata-se de um conhecimento inacessível pelos métodos científicos do saber humano. Por isso Paulo afirma que o "homem natural" (gr. psichikos) não entende as coisas de Deus tomando-as como "loucura" ao contrário do que faz o "homem espiritual" (pneumatikos).

O que nos parece isso, irmãos? Não estaria aí a ideia de que todos estamos na dependência de uma revelação espiritual vinda de Deus? Pois é o que percebo ao meditar sobre o texto bíblico.

Confesso que, após ter estudado Direito na faculdade, tornei-me um amante da Teologia a ponto de haver nas 700 postagens do meu blogue mais textos falando sobre a Bíblia do que a respeito das leis, política ou qualquer outro assunto. Porém, nenhuma ciência e tão pouco o conhecimento teológico adquirido foram capazes de acrescentar alguma medida de fé ao meu coração. Muito pelo contrário! Pois, sem querer desconsiderar a utilidade da Teologia para fins de cognição textual das Escrituras Sagradas, compartilho que cheguei até a me afastar de Deus em alguns momentos nas vezes quando direcionei as expectativas pessoais de espiritualidade para esse campo de estudo acadêmico. Todo o acréscimo obtido com a Teologia foi puramente intelectual!

Será que, na atualidade, muitos estudiosos da Teologia não estão correndo os mesmos riscos de obscurecimento que tiveram aqueles célebres e ilustres ouvintes de Paulo na Grécia, os quais se achavam bem endurecidos para a cruz de Cristo?!

Meus amados, não vejo outra maneira de cada um buscar entender o sentido da cruz do Senhor senão através de uma revelação pessoal dada pelo Espírito de Deus. E para mim essa cruz não seria uma ideia tosca. Ela significa a vitória de todos sobre o pecado, a recuperação da própria vida, a redenção da humanidade, a manifestação do profundo amor divino incorporado por Jesus, o desapego total das coisas perecíveis deste mundo, o mais alto nível de santidade que um homem pode alcançar, um exemplo emblemático de humildade, a nossa aceitação gratuita e incondicional pelo Criador, meu alvo de vida, a luz que ilumina as minhas trevas existenciais guiando-me em meio às dificuldades do cotidiano, a proclamação de uma nova terra e de novos céus mostrando ser possível construirmos um outro futuro alternativo a esse presente de violência, de tiranias e de desprezo pela pessoa humana.

É claro que para um crítico bitolado do cristianismo a cruz sempre assumirá significados negativos. Só que essas opiniões não me importam mais hoje em dia. Se fosse do meu querer, eu saberia como elaborar um ferrenho discurso de apologética capaz de produzir morte ao invés de vida, bem como alienação espiritual. Acabaria cometendo os mesmos erros dos que se apegam a uma visão restrita da realidade e se fecham dentro dos próprios conceitos intelectuais tornando-se soberbos a ponto de se acharem donos da verdade ou proprietários de Deus. E os tais "soldados da fé" acabam aprisionando o pensar deles mesmos e daqueles que os seguem dentro das gaiolas nas quais se congregam consideradas como sendo "igrejas".

Por isso, caros leitores, não me interessa fazer da mensagem da cruz uma doutrinação a ponto de inibir a experiência subjetiva das pessoas. Deus me livre de racionalizar a fé para não cair nos mesmos enganos dos que não querem crer no Evangelho! Pois, como tenho observado, até os crentes correm o risco de se apegar aos conceitos por eles criados e deixarem de ouvir as coisas que Deus nos tem falado.

"mas, como está escrito: Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em coração humano o que Deus tem preparado para aqueles que o amam." (1ªCo 2:9)

Para finalizar, compartilho dizendo que desta advertência acima nem o próprio escritor bíblico poderia escapar, caso se tornasse insensível à revelação de Deus. E assim deve-se reforçar a necessidade de que andemos todos sempre atentos, vigilantes, conservando a humildade interior, o desejo de aprendizado espiritual e a devida reverência pelo Criador. Porque o Eterno não cessa de fazer coisas novas e dando os seus recados à humanidade por meio dos profetas que continua levantando hoje e sempre. Seu Espírito sopra aonde quer e pouco compreendemos. Logo, cabe ao homem tornar-se sensível o suficiente para conseguir ouvir aquela Voz suave falando ao seu coração sem recorrer a respostas explicativas ou a sinais prodigiosos.


OBS: A ilustração usada neste artigo refere-se à obra do artista da Renascença Rafael Sanzio (1483-1520), o qual pintou o apóstolo Paulo pregando na cidade grega de Atenas. Extraí a imagem do acervo virtual da Wikipédia em http://commons.wikimedia.org/wiki/File:V%26A_-_Raphael,_St_Paul_Preaching_in_Athens_(1515).jpg

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