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domingo, 24 de novembro de 2013

"Pedro se lembrou da palavra do Senhor (...) saindo dali, chorou amargamente"



"Então, prendendo-o, o levaram e o introduziram na casa do sumo sacerdote. Pedro seguia de longe. E, quando acenderam fogo o meio do pátio e juntos se assentaram, Pedro tomou lugar entre eles. Entrementes, uma criada, vendo-o assentado perto do fogo, fitando-o, disse: Este também estava com ele. Mas Pedro negava, dizendo: Mulher, não o conheço. Pouco depois, vendo-o outro, disse: Também tu és dos tais. Pedro, porém, protestava: Homem, não sou. E, tendo passado cerca de uma hora, outro afirmava, dizendo: Também este, verdadeiramente, estava com ele, porque também é galileu. Mas Pedro insistia: Homem, não compreendo o que dizes. E logo, estando ele ainda a falar, cantou o galo. Então, voltando-se o Senhor, fixou os olhos em Pedro, e Pedro se lembrou da palavra do Senhor, como lhe dissera: Hoje, três vezes me negarás, antes de cantar o galo. Então, Pedro, saindo dali, chorou amargamente." (Evangelho de Lucas, capítulo 22, versículos de 54 a 62; versão e tradução ARA)

Foi anteriormente estudado no artigo "(...) quando te converteres, fortalece os teus irmãos" que, durante o íntimo momento da Ceia, Jesus havia predito as três negações de Simão Pedro e, na sequência, o Mestre saiu para orar no Monte das Oliveiras (Lc 22:39-46), onde veio a ser ilegalmente preso (Lc 22:47-53). Estes últimos acontecimentos sucederam na calada da noite, longe das vistas das multidões, e com o auxílio de um traidor sobre o qual os discípulos chegaram a discutir entre si procurando pela identidade do tal indivíduo (Lc 22:23).

Entretanto, com o episódio da negação de Pedro, aprendemos a nos reconhecer igualmente como seres humanos passíveis de semelhantes falhas e incapazes de manter imaculada em todo tempo a nossa integridade como servos de Cristo. Descobrimos que muitas das vezes (ou quase sempre) ainda não estamos tão prontos para seguir a Jesus em todos os passos que o Mestre deu. E, quando pensamos soberbamente que controlamos as nossas ações/palavras, somos então dirigidos pelos sentimentos mais baixos/covardes.

Não podemos ignorar que Pedro teve uma certa dose de coragem para entrar no pátio da casa do sumo sacerdote. Informa o texto que o discípulo teria "seguido de longe" a Jesus, de modo que precisamos valorizar alguns aspectos de sua atitude ainda que imperfeita. Aliás, o autor sagrado não diz que algum outro dos doze teria acompanhado o Mestre até lá. No texto do 2º Evangelho consta a informação de que, após a prisão, os apóstolos abandonaram o Senhor e se evadiram (Mc 14:50), assim como foi frustrada a tentativa do jovem anônimo que, vergonhosamente, fugiu nu dos guardas (Mc 14:51-52). Portanto, segundo a tradição dos sinóticos (não de João), Pedro é o único homem mencionado pelos respectivos escritores que teria agido com tão grandiosa ousadia.

Contudo, quanto mais ousamos, maior é o risco que assumimos tendo em vista a nossa exposição. Assim, a iluminação da fogueira acesa mostrará ser também Pedro o único dentre os demais discípulos de Jesus que o negou confessionalmente por três vezes. Se os outros não agiram dessa maneira, devemos considerar que os mesmos não permaneceram vulneráveis diante de uma situação tão adversa. Na casa do sumo sacerdote, Simão foi testado não apenas em relação ao medo mas também no que diz respeito à vergonha e sua identidade como seguidor de Cristo numa circunstância vexatória. Ali o Mestre estava permitindo que fizessem dele um prisioneiro e o humilhassem. Nenhum milagre foi realizado naquela hora! Conforme havia predito o profeta, o Salvador "foi como cordeiro levado ao matadouro" (Is 53:7), o que era uma visão ainda encoberta aos olhos dos apóstolos acerca do Messias.

Recordo que, em minha infância, tive grande orgulho de meu avô paterno logo quando fui morar com ele em 1985, uns dezesseis meses depois do falecimento de papai. Ainda no final de seus sessenta anos, o velho coronel Ancora gozava de plena saúde fazendo em casa alguns dos exercícios de rotina que praticou nas suas três décadas e meia de serviço militar. Eu muito me cansava quando o acompanhava pelas ruas da cidade mineira de Juiz de Fora. Diante dos meus colegas de escola, não escondia minhas emoções em apresentá-lo como um segundo pai. Porém, cerca de um decênio depois, o vigor físico do vovô já não era mais o mesmo assim como a sua memória foi falhando. Em minha estupidez de adolescente imaturo, sentia uma vergonhosa vergonha quando me encontrava na rua em sua companhia. Queria ao meu lado um avô incapaz de adoecer/envelhecer.

Assim é que entendo a crise dos discípulos quando Jesus se deixou prender pelos guardas do Templo e não reagiu. Talvez eles tenham também se decepcionado por não encontrarem mais no Mestre um substituto para o rei Davi que lutara contra o gigante filisteu. Se tiveram medo, este sentimento só teria aflorado em momento posterior à prisão porque, quando os soldados chegaram, eles ainda perguntaram se seria para resistirem fazendo uso da espada (Lc 22:49). E, se foi Pedro quem cortou a orelha direita do servo do sumo sacerdote, como relata a tradição independente do 4º Evangelho (Jo 18:10), temos aí mais um elemento capaz de caracterizar a coragem do discípulo.

Mas como conseguimos ser tão ambíguos, não é mesmo?!

Considero que o comportamento oscilante de Pedro ajuda a fazer um diagnóstico do próprio homem. Com ele aprendemos que somos capazes de errar reincidentemente e nas mesmas coisas (a repetição de um acontecimento por três vezes torna-se algo emblemático na visão judaica). Todavia, também aprendemos com o discípulo que devemos estar permanentemente dispostos ao arrependimento e a novos começos. Após o galo cantar, o Evangelho de Lucas narra com exclusividade ter Jesus voltado os olhos para o seu seguidor (22:61), fazendo com que se lembrasse de suas palavras.

Não consigo ver nesse olhar de Jesus uma reprovação ou, menos ainda, qualquer ressentimento ruim de mágoa/ódio. Nosso Senhor sempre esteve acima dessas coisas. O que percebo em seu gesto seria a mais pura compreensão dos limites da nossa humanidade. É a misericordiosa postura de quem  me diz que, apesar da maneira como possa ter vivido parte da adolescência e juventude no trato com as pessoas, ainda posso aprender a amar o meu semelhante, quer seja na força ou na fraqueza.

Diferentemente de Judas, que, de acordo com o 1º Evangelho, havia sido dominado pelo remoço e cometido suicídio (Mt 27:3-5), eis que o choro de Pedro foi sinal de um genuíno arrependimento. Suponho que Simão desejou ficar a sós e, tendo as palavras de Jesus penetrado dessa vez no seu íntimo, creio que, finalmente, ele se auto-compreendeu. Não somente tomou consciência do mal que era capaz de cometer, mas que também precisava aceitar o perdão que fora anteriormente liberado pelo Mestre desde a Ceia (Lc 22:34).

Alguns estudiosos afirmam que as passagens bíblicas sobre a tripla negação de Pedro teriam ajudado muitos cristãos do passado a não desistirem da causa do Evangelho quando foram forçados a negar Jesus confessionalmente diante dos torturadores romanos. Penso, porém, que, na atualidade nossa do Ocidente, onde a Igreja se vê temporariamente livre das violentas perseguições estatais, o episódio ainda seja ainda aplicável para as vezes quando a fé é negada por meio das condutas que praticamos, quer sejam comissivas ou omissivas. Dentro do discipulado de Cristo, é possível errar e falhar feio, mas o olhar compreensivo/amoroso de Jesus está fixado em nós afim de nos ajudar. Para que venhamos sempre a nos arrepender e retomar a caminhada nos passos do Mestre.

Uma semana abençoada para todos!


OBS: A ilustração acima refere-se à pintura As Lágrimas de Pedro (década de 1580) do artista cretense Doménikos Theotokópoulos (1541-1614), mais conhecido como El Greco. A obra encontra-se atualmente no Bowes Museum, em Teesdale, Condado de Durham, Inglaterra. A imagem foi extraída do acervo virtual da Wikipédia conforme consta em http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Las_lagrimas_de_san_Pedro_El_Greco_1580.jpg

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