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sábado, 30 de novembro de 2013

"Naquele mesmo dia, Herodes e Pilatos se reconciliaram..."



"Levantando-se toda a assembleia, levaram Jesus a Pilatos. E ali passaram a acusá-lo, dizendo: Encontramos este homem pervertendo a nossa nação, vedando pagar tributo a César e afirmando ser ele o Cristo, o Rei. Então, lhe perguntou Pilatos: És tu o rei dos judeus? Respondeu Jesus: Tu o dizes. Disse Pilatos aos principais sacerdotes e às multidões: Não vejo neste homem crime algum. Insistiram, porém, cada vez mais, dizendo: Ele alvoroça o povo, ensinando por toda a Judeia, desde a Galileia, onde começou, até aqui. Tendo Pilatos ouvido isto, perguntou se aquele homem era galileu. Ao saber que era da jurisdição de Herodes, estando este, naqueles dias, em Jerusalém, lho remeteu. Herodes, vendo a Jesus, sobremaneira se alegrou, pois havia muito queria vê-lo fazer algum sinal. E de muitos modos o interrogava; Jesus, porém, nada lhe respondia. Os principais sacerdotes e os escribas ali presentes o acusavam com grande veemência. Mas Herodes, juntamente com os de sua guarda, tratou-o com desprezo, e, escarnecendo dele, fê-lo vestir-se de um manto aparatoso, e o devolveu a Pilatos. Naquele mesmo dia, Herodes e Pilatos se reconciliaram, pois, antes, viviam inimizados um com o outro." (Evangelho de Lucas, capítulo 23, versículos de 1 a 12; versão e tradução ARA)

Foi abordado no nosso estudo anterior que o Sinédrio judaico buscou que a sua decisão a respeito de Jesus obtivesse também o reconhecimento pelo juízo do dominador estrangeiro porque só as autoridades romanas tinham o poder de condenar alguém à pena capital. Para tanto, era necessário que os sacerdotes e escribas que compunham o tal conselho representassem contra o Mestre como sendo ele um criminoso político e que estivesse instigando revoltas populares. Como pode ser facilmente compreendido na passagem bíblica acima citada, fizeram então falsas acusações sobre Jesus ter se auto-declarado um rei messiânico e ainda proibido o pagamento do tributo a César (verso 2). Afinal, Roma pouco se importava com as disputas religiosas dos povos conquistados de maneira que o procurador Pôncio Pilatos nem apreciaria o caso se lhe apresentassem uma controvérsia versando somente sobre "blasfêmia".

Ao que parece, Pilatos havia compreendido o quanto as acusações contra Jesus eram infundadas e reconheceu a inocência de nosso Senhor (verso 4). Contudo, o texto nos mostra claramente como que ele era um homem de conveniências. Ao exercer a jurisdição, aquele procurador do Império Romano não pretendia distribuir justiça, mas, sim, agradar a quem lhe interessava. E, diante da insistência dos representantes do Sinédrio, não fez o deveria ter sido feito, isto é, libertar Jesus. Antes, pensou em extrair o máximo proveito daquela situação.

De acordo com a História, eis que, na época romana, os delitos eram processados e julgados na província onde foram cometidos. Atentamente, Pilatos havia observado que Jesus seria proveniente da Galileia e que de lá começara as suas pregações. Então, como não lhe interessava decidir a demanda a ele submetida, considerou proveitoso remeter o Mestre para Herodes Antipas que, por aqueles dias, governava a região da Galileia.

Era bem provável que Pilatos e Herodes tivessem seus conflitos políticos e administrativos, principalmente em relação à competência territorial. Até o ano 4 a.C., Herodes, o Grande, governou todo o território de Israel como um rei vassalo de Otávio Augusto. Com a sua morte, o poder da família foi reduzido pela divisão. De acordo com o historiador Flávio Josefo, o imperador

"nomeou Arquelau, não para ser o rei de todo o país, mas para ser etnarca, ou metade do que estava sujeito a Herodes, e prometeu dar-lhe a dignidade real doravante, se governasse a sua parte de forma justa. Mas quanto a outra metade, ele dividiu em duas partes, e as deu aos outros dois dos filhos de Herodes, a Filipe e Herodes Antipas, o qual disputou com Arquelau pelo reino todo. Desta forma, para ele era Pereia e Galileia que deveriam pagar seus tributos, que somavam, anualmente, 200 talentos, enquanto Batanea com Traconites, bem como Auranitis, com uma certa parte do que foi chamado "Casa de Lenodorus", pagassem o tributo de 100 talentos à Filipe. Entretanto a Idumeia, e Judeia, e o país de Samaria, pagavam tributo à Arquelau, porém tinham a partir dali uma quarta parte desse tributo retirado por ordem de César, que decretou a eles aquela mitigação, devidos eles não terem se unido nesta revolta com o resto da multidão" (Antiguidades 17, capítulo 12, versos 317-319)

Nos dias do ministério de Jesus, a presença dos procuradores romanos e dos governadores das províncias certamente criava obstáculos para a consolidação do poder político da família de Herodes. Nesse jogo do poder, buscava-se ao mesmo tempo bajular César e ampliar a popularidade pessoal obtendo o máximo de apoio interno dentro da sociedade judaica. Principalmente entre os sacerdotes e os grupos religiosos dos fariseus que tinham alguma influência sobre as massas, ajudando a controlar os ânimos dos revoltosos. Roma queria continuar dominando aquela complicada região do Oriente Médio que era a Palestina cujos súditos não se submetiam tão facilmente. E um dos motivos sempre foram as fortes questões culturais já que os judeus não se deixavam assimilar tão facilmente, preservando com o sangue os seus radicados costumes.

Embora Herodes Antipas fosse um idumeu, e não de origem judaica, ele se encontrava em Jerusalém por ocasião da Páscoa. Enquanto os procuradores romanos mantinham-se alheios às festividades populares dos judeus, era compreensível que aquele rei tributário desejasse parecer com alguém do povo que governava. Afinal, fora seu pai quem reformara o Templo de Jerusalém e ele, mesmo descumprindo os principais mandamentos da Lei de Deus (pois vivia numa relação adúltera com Herodias, esposa de seu irmão Filipe, e ainda decapitou a João Batista na prisão), interessava-lhe participar daquela importante peregrinação religiosa na Cidade Sagrada.

Quando Jesus ainda estava na Galileia, Herodes já tinha o interesse de vê-lo porque ouvia notícias extraordinárias a seu respeito (Lc 9:7-9). Provavelmente o monarca sentisse certa curiosidade pelo sobrenatural pois o texto bíblico acima transcrito informa que ele esperava ver algum sinal (23:8). Porém, o Mestre jamais realizou milagres por encomenda como se estivesse num espetáculo da mágicas. Nosso Senhor não fazia um uso indevido dos dons do Espírito Santo que lhe foram dados na ocasião do seu batismo no rio Jordão para uma finalidade evangelística. Nunca para entreter um sujeito profano que não tinha qualquer interesse por se arrepender. Sabemos que, no seu ministério, Jesus acolheu publicanos, prostitutas e todos os pecadores dispostos a se converter, o que não era o caso do governador de sua província a quem chamou de "raposa". Aliás, vale destacar que, desde o capítulo 13, por intermédio dos fariseus, Jesus havia dado este recado ao rei:

"Ele, porém, lhes respondeu: Ide dizer a essa raposa que, hoje a amanhã, expulso demônios e curo enfermos e, no terceiro dia, terminarei [ressuscitarei]. Importa, contudo, caminhar hoje, amanhã e depois, porque não se espera que um profeta morra fora de Jerusalém." (13:32-33)

Vendo que não havia conseguido o que pretendia, Herodes começou a zombar de Jesus. Se ele realmente ameaçou o Senhor de morte quando o Mestre ainda estava na Galileia, na vez em que obteve a chance de julgá-lo parece ter tentado contornar a situação fazendo escárnios diante dos sacerdotes e escribas. No fundo, ele sabia que os membros do Sinédrio pretendiam condenar à morte um inocente e, como viu que não bastavam aquelas ridicularizações, devolveu Jesus para Pilatos. Há quem diga que o fato do rei ter praticado tais zombarias seria porque não levou tão a sério a acusação.

Com exclusividade, o 3º Evangelho relata que, naquele dia, Herodes e Pilatos se reconciliaram. Suponho ter o rei visto no ato do procurador romano uma demonstração de respeito pela sua competência jurisdicional e, talvez, tenha interpretado aquilo como um sinal de aproximação política. Assim, podemos ver que o autor sagrado de uns 2000 anos atrás já escrevia sobre toda a podridão existente no sistema político de seu tempo, o que não é muito diferente da atualidade. As autoridades da Palestina na época de Jesus pouco se importavam com a realização da justiça e nem com a vida humana. Condenavam, absolviam ou se abstinham de julgar sempre por mera conveniência.

Penso que este é um grave problema que acompanha a trajetória histórica de muitos povos. Inclusive do nosso Brasil onde só recentemente temos visto políticos graúdos sendo presos como no caso do Mensalão. Mesmo assim, ainda tem prevalecido um sentimento de conveniência cujas raízes estão no nosso comportamento social onde os interesses particulares continuam prevalecendo.

Perante aqueles homens injustos, Jesus permaneceu quase todo o tempo calado. Não proferiu nenhuma palavra a Herodes e, quando Pilatos perguntou se ele era o "rei dos judeus", sabiamente se posicionou dizendo: "Tu o dizes" (ou "assim você diz"). E, deste modo, nosso Senhor manteve em todo o tempo a sua integridade, mostrando que não era nenhum revoltoso. Não buscou fazer qualquer acordo que pudesse livrá-lo de algum julgamento desfavorável, mas se conservou fiel a Deus entregando-se irrestritamente à vontade soberana do Pai. Foi uma admirável atitude de fé, a qual deve hoje nos inspirar para que a Igreja preserve-se limpa sempre que vivenciar circunstâncias semelhantes.


OBS: A ilustração acima refere-se à obra do artista italiano Duccio di Buoninsegna (c. 1255/1260 - c. 1318/1319), a qual mostra Jesus perante Pilatos (acima) e Herodes Antipas (abaixo). Foi extraída do acervo virtual da Wikipédia conforme consta ampliadamente em http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Duccio_di_Buoninsegna_027.jpg

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