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quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Os vendilhões dos templos e seus sacerdotes


"Depois, entrando no templo, expulsou os que ali vendiam [e compravam], dizendo-lhes: Está escrito:
    A minha casa será chamada casa de oração.
Mas vós a transformastes em covil de salteadores."
(Evangelho de Lucas, capítulo 19, versículos 45 e 46; ARA)

Esta é uma passagem da Bíblia que requer muito cuidado em sua abordagem afim de que o ato de Jesus não venha a ser mal utilizado para justificar as violências da Igreja. Sejam as atrocidades do passado (cruzadas, inquisições e torturas) como as absurdas exclusões de pessoas feitas até hoje em nome de Cristo.

A expulsão dos vendilhões do Templo judaico é um episódio relatado nos quatro evangelhos canônicos (conferir com Mt 21:12-13; Mc 11:15-17; Jo 2:13-16), mas o texto de Lucas é o que oferece menos detalhes informando apenas uma única ação do Mestre: "expulsou". Já o livro de João narra o fato como se houvesse acontecido no começo do ministério do Senhor e faz com que o leitor viva um pouco daquela suposta cena com Jesus usando um azorrague de cordas e tocando pra fora do local todas aquelas pessoas que lá se encontravam com os seus animais, derramando o dinheiro dos cambistas pelo chão e virando as mesas.

Juntamente com os efeitos da arte sacra, não há como a cristandade apagar de sua memória religiosa esse acontecimento dos evangelhos. Seria o "dia de fúria" de Jesus, uma conduta atípica do Mestre que muitos preferem até evitar de comentar porque parece fugir de seus padrões pacifistas habituais. Aliás, suponho até que tal sentimento possa ter conduzido as penas do escritor do 3º Evangelho que, como vimos no estudo anterior, resolveu dar uma ênfase toda especial da mensagem de paz do Salvador quando aproximou-se de Jerusalém montado num humilde burrinho e, em seguida, chorou pela cidade.

Os evangelhos de Mateus e de Lucas narram o ocorrido como se houvesse acontecido instantes após à chegada de Jesus na cidade. Somente Marcos dá o espaço de tempo de um dia, inserindo entre os dois momentos a maldição da figueira sem frutos (Mc 11:12-14). Mas seja como for, qualquer uma dessas narrativas vai nos levar a considerar um comportamento humanamente ambíguo do nosso Senhor e/ou a questionarmos o tipo de paz cristã que a Igreja tem proposto à humanidade. Diferentemente da tradição dos sinóticos, o texto joanino diz ter sido aquilo uma atitude de "zelo" através de uma citação do versículo 9 do Salmo 69 dentro de uma posterior releitura dos discípulos (Jo 2:17).

Entretanto, podemos estar é perdendo tempo quando queremos estabelecer uma coerência lógica para todas as passagens bíblicas e encaixá-las nos limites da visão doutrinária que construímos. E, nestas horas, deixamos de saborear a beleza do texto pelo que sugiro encararmos as Escrituras Sagradas sempre como aprendizes que acabam de se matricular no primeiro ano de uma escola ao invés de nos portarmos como PhDs que avaliam teses.

Assim sendo, observo que o autor de Lucas escreveu em poucas linhas somente o essencial e tudo aquilo que importou para a transmissão das boas-novas aos leitores dentro de seu contexto literário. Jesus atipicamente protestou contra aquele comércio no Templo de seu povo e, embasado nas Escrituras, justificou a que deve se destinar o uso do lugar que era conhecido também como a "Casa de Deus".

Primeiramente devemos entender quem eram aqueles que vendiam e compravam e qual o objeto dos negócios ali realizados. E, nesta hora, precisamos recorrer a pelo menos um dos outros evangelhos sinóticos e buscarmos compreender como funcionava o sistema penitencial daquela época.

Segundo a legislação mosaica, os rituais de imolação de animais faziam parte do culto judaico no Templo. O livro de Levítico faz menção dos holocaustos, das ofertas pacíficas/de comunhão e do sacrifícios pelos pecados. Se alguém pecasse "por ignorância", deveria trazer um animal para expiação, o que também era exigido para várias situações das quais as de sacrilégio, purificação da mulher após o parto, cura e reintegração de um ex-leproso e nas festas sagradas. Por conta disso, formou-se no Israel antigo uma indústria expiatória e que tinha o seu ponto alto no Yom Kippur ("Dia do Perdão"), comemorado uma vez ao ano, geralmente no mês de outubro, mas sempre seguindo o calendário judaico.

Certa vez, o profeta Oseias criticou os sacerdotes porque eles se alimentavam do pecado do povo (Os 4:8). Pois, segundo Levítico 6:26, era direito do clero, quando oferecia o sacrifício pelo pecado de alguém, comer uma porção do animal no santuário do Templo. Só que, com o tempo, tais religiosos tinham passado a se alegrar com os erros cometidos pelas pessoas pois, desta maneira, eles ganhariam mais carne.

Assim também, nos tempos de Jesus, o sistema sacerdotal era sustentado pela exploração abusiva do sentimento de culpa do povo. E, com tantas regras de homens inventadas pelos fariseus e mestres da Lei, talvez fosse mais fácil alguém achar que estava em pecado do que na época anterior do profeta Oseias.

Todavia, não foi contra o sistema sacrificial em si que o Senhor Jesus havia se posicionado naquela ocasião. Do contrário, o Mestre jamais teria mandado os leprosos que curou apresentarem-se ao sacerdote e fazerem a oferta prescrita por Moisés (Lc 5:14; 17:14). Ao que me parece, o Senhor deveria estar indignado com a manipulação da fé do povo. Algo que, consequentemente, propiciava um rentável comércio num local que era considerado sagrado entre os judeus.

A fundamentação para tirar os vendilhões do Templo, conforme a justificativa de Jesus, estaria nos livros dos profetas. O Mestre teria baseado-se numa combinação midráshica de Isaías 56:7 com Jeremias 7:11 e trouxe à memória as advertências recebidas pelos sacerdotes nos últimos anos da 1ª Casa antes de Jerusalém ser destruída pelo exército de Nabucodonosor (586 a.C.). A expressão "covil de salteadores" serviu para expressar a corrupção da nação naqueles dias de perversidade, indiferença social, desrespeito para com a vida humana, apostasia, depravação sexual, roubos e outras injustiças mais. Foi quando Jeremias denunciou corajosamente o pecado de uma geração que, mesmo fazendo todas essas abominações, ainda se considerava protegida por causa do edifício do Templo.

Nos tempos de Jesus, os judeus já não queimavam mais incenso a Baal e nem andavam após outros deuses mas, ainda assim, os sacerdotes da 2ª Casa cultivavam outros vícios igualmente reprováveis. Continuavam pecando contra o essencial que era a falta de atos misericordiosos e de justiça social. Quanto a isto, toda aquela estrutura religiosa tornara-se vil pela concentração de riquezas. O clero recebia não só o dízimo da nação inteira como também muitas ofertas enquanto havia um número bem significativo de pessoas na mais absoluta miséria.

Ora, será que a atitude de Jesus não iria provocar alguma reação?! Vejamos o que diz o texto seguinte:

"Diariamente, Jesus ensinava no templo, mas os principais sacerdotes, os escribas e os maiorais do povo procuravam eliminá-lo; contudo, não atinavam em como fazê-lo, porque todo o povo, ao ouvi-lo, ficava dominado por ele." (Lc 19:47-48)

Não vejo dificuldades em compreender os motivos pelos quais Jesus morreu. A expulsão dos vendilhões do Templo, se não estivesse motivada por um ideal que fosse além de repudiar o comércio no local, talvez passaria como algo de menos importância. O acontecimento seria visto como coisa de um fanático da Galileia. Só que, de um modo até fora dos padrões, o nosso Senhor conseguiu tocar no cerne da questão. Junto com os sacerdotes estavam os escribas, isto é, os teólogos da época que criavam doutrinas para incutir culpas e atrair pessoas para a prática das penitências. Acrescentavam coisas acima do que as Escrituras diziam porque interessava ao sistema manter o povo sobrecarregado de fardos. E a maneira receptiva como Jesus tratava o pecador é que poderia de fato fazer o comércio de animais minguar.

Se o Mestre estava incomodando tanto os ricos, políticos e chefes da religião, a solução que acharam foi "eliminá-lo". Não dava para fazer uma covardia dessas na frente do povo porque as pessoas impediriam. Teriam que pensar numa maneira de prender Jesus às escondidas. Foi o que fizeram como temos visto acontecer inclusive na história recente com muitos sindicalistas, líderes de sem-terra, seringueiros, jornalistas que denunciavam a ditadura militar, ativistas de direitos humanos, etc. Assim, a morte do Salvador foi também a de muitos os que abraçaram a causa do pobre e do oprimido, ousando desafiar os podres poderes dos maiorais de ontem e hoje.


OBS: A ilustração acima refere-se à obra Jesus expulsando os mercadores do Templo (1885) do artista francês Alexandre Bida (1813-1895). Foi extraído do acervo virtual da Wikipédia em http://pl.wikipedia.org/wiki/Plik:Incidente_Templo.jpg

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