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quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Frutos de uma conversão autêntica


"Entrando em Jericó, atravessava Jesus a cidade. Eis que um homem, chamado Zaqueu, maioral dos publicanos e rico, procurava ver quem era Jesus, mas não podia por causa da multidão, por ser ele de pequena estatura. Então, correndo adiante, subiu a um sicômoro afim de vê-lo, porque ali havia de passar. Quando Jesus chegou àquele lugar, olhando para cima, [viu-o e] disse-lhe: Zaqueu, desce depressa, pois me convém ficar hoje em sua casa. Ele desceu a toda pressa e o recebeu com alegria. Todos os que viram isto murmuravam [queixavam-se], dizendo que ele se hospedara com homem pecador. Entrementes, Zaqueu se levantou e disse ao Senhor: Senhor, resolvo dar aos pobres a metade dos meus bens; e, se nalguma coisa tenho defraudado alguém, restituo quatro vezes mais. Então, Jesus lhe disse: Hoje houve salvação nesta casa, pois que também este é filho de Abraão. Porque o Filho do Homem veio buscar e salvar o perdido." (Evangelho de Lucas, capítulo 19, versículos de 1 a 10; versão e tradução ARA)

O episódio da conversão de Zaqueu, que é exclusivo de Lucas, seria uma de minhas passagens bíblicas preferidas para falar sobre os temas da conversão e da salvação. No entanto, tal passagem também ilustra e explica qual o propósito do ministério gracioso de nosso Senhor Jesus Cristo: "buscar e salvar o perdido" (verso 10).

No capítulo anterior do Evangelho, estudamos a respeito do diálogo entre Jesus e o jovem rico seguido depois pela pergunta dos ouvintes sobre "quem pode ser salvo" (18:26). Já no trecho que trata da conversão de Zaqueu, a questão será finalmente respondida e o autor sagrado vai nos mostrar também como que um rico consegue passar "pelo fundo de uma agulha" (18:25).

Jericó parece ser a última cidade na qual Jesus iria hospedar-se antes de concluir a sua peregrinação rumo a Jerusalém. No dia seguinte, haveria de subir uma enorme montanha deserta. A essa altura, o Salvador já devia ser bem conhecido de modo que tanto Zaqueu quanto o cego curado no caminho de Jericó (18:35-43) certamente sabiam de sua fama. Os moradores da localidade, por sua vez, poderiam estar se sentindo honrados com a visita e a presença do Mestre ali.

No meio de uma multidão, um sujeito baixinho e de má reputação social vai chamar a atenção de Jesus. Era Zaqueu que se esforçava para vê-lo por causa de sua pouca estatura. As pessoas naquela turba na certa se posicionavam em sua frente, mas havia nele um interesse todo especial pelo Senhor. Seu coração ansiava por algo que o preenchesse satisfatoriamente e o Mestre de um modo inexplicável lhe atraía.

Os obstáculos não foram problemas para Zaqueu. Como uma criança, ele resolve então subir num sicômoro, uma planta muito comum Oriente Médio e que produz uns figos de qualidade inferior. Suponho que um homem de sua idade não teria a coragem de se expor tanto na época de Jesus porque talvez fosse vergonhoso.

Contudo, diferentemente dos fariseus e dos mestres da Lei, Zaqueu não tinha uma reputação moral a zelar. Era mal visto por todos em sua comunidade, na mesma medida em que talvez fosse invejado, visto que exercia o trabalho indigno de publicano, coletando impostos do próprio povo judeu para o dominador romano (ler o artigo O engano de nos considerarmos suficientemente justos que fala da Parábola do Fariseu e do Publicano). Isto sem nos esquecermos de que tais funcionários costumavam levar vantagens do contribuinte exigindo valores em excesso, além de propinas. E, estando Jericó numa importante rota comercial da região, dispondo também de um famoso bosque de bálsamo, acredito que esses atrativos econômicos deveriam ter ajudado a enriquecer Zaqueu por muitos anos.

Só que o dinheiro era incapaz de dar um sentido à sua existência. Já as palavras do Mestre, sim. E, como bem sabemos, Jesus transmitia vida aos seus ouvintes, proporcionando-lhes aceitação, esperança, restauração e um novo ânimo. Quem se encontrasse com ele, estando de coração aberto, era incrivelmente transformado. Creio que seus gestos, os modos de andar e de se expressar já deveriam comunicar muita coisa permitindo que as pessoas mais atentas o ouvissem com os olhos.

Notável era a sensibilidade do Senhor. Jesus poderia caminhar no meio de uma multidão mas seria capaz de prestar a atenção em quem estava vindo a ele com vontade. Foi assim na cura da mulher com fluxo de sangue (8:42b-48) e não seria diferente no caso de Zaqueu. O Mestre viu num homem em cima da árvore alguém que pudesse receber mais dos seus ensinamentos pelo que toma a iniciativa ousada de hospedar-se em sua casa.

Os demais moradores de Jericó sentiram-se desprestigiados com aquela escolha. Por que, no meio de tanta gente "digna" na cidade, Jesus resolveu ficar justamente na casa de um publicano pecador e desprezível aos olhos de todos? Não haveria ali homens piedosos e que fossem honestos em todos os seus negócios?!

Só que Jesus veio para quebrar paradigmas. Na lógica do Reino de Deus, como o Mestre tantas vezes ensinou, nenhum homem pode barganhar com o seu Criador. O amor imensurável do Pai é por demais grandioso e não se encontra condicionado aos nossos méritos. Sendo assim, Jesus estava buscando a receptividade interior das pessoas e isto ele viu em Zaqueu como podemos observar pela prontidão e pela alegria deste em receber o novo hóspede em sua morada (verso 6).

Creio que a conversão de Zaqueu é confirmada pela atitude expressa no versículo oitavo. Gratuitamente ele havia recebido a aceitação de Jesus sem nada merecer. Após esse banho de amor, já não fazia mais qualquer sentido continuar levando uma vida errante que só prejudicava as pessoas e empobrecia a comunidade. Zaqueu decide então distribuir a metade dos seus bens aos pobres e restituir em quatro vezes mais a quem um dia ele fraudou.

Como se vê, a conversão tem a ver não somente com uma mudança de mentalidade como ela também implicará na tomada de atitudes opostas às ações erradas que foram anteriormente praticadas. Buscar a reparação do mal causado, ao invés de fugir das responsabilidades, torna-se uma escolha natural da consciência humana transformada. Não porque seja um pré-requisito salvífico, mas sim pelo fato de que a nova conduta passa a integrar o sentido existencial de quem teve um encontro real com a graça de Deus. E aí fazer o bem prioritariamente aos que antes prejudicávamos torna-se uma oportunidade de compartilharmos o amor do Pai tratando ao mesmo tempo da questão do perdão entre ofensor e ofendido.

Seria fácil para Zaqueu trilhar esse novo caminho? As pessoas por ele lesadas iriam estar dispostas a receber suas desculpas? Quantos não duvidariam de sua conversão? Independentemente do orgulho, suas vítimas não estariam com os sentimentos ainda feridos? E o que dizermos acerca dos que já teriam morrido?

Para todas essas perguntas, a graça sempre será a resposta! Com ela está o perdão e o poder para transformar o ser humano afim de que este se torne um doador de coisas boas como o nosso Criador é. Não há trocas, mas sim a construção de uma ética muito mais elevada do que qualquer busca compensatória. Se a legislação mosaica estipulava a restituição do montante fraudado acrescido de 20% (Lv 6:5; Nm 5:7), Zaqueu decide ir muito mais além. Dá 300% a mais porque o seu coração entendeu que assim seria justo.

Jesus parece comemorar ao dizer "hoje houve salvação nesta casa". Embora a multidão permanecesse bem endurecida e muitos ali se sentiam indignados pela escolha de hospedagem do Mestre, um homem abria o seu coração para entender as coisas do Reino de Deus. O perdido estava se encontrando com a vida! Despertando-se antes mesmo de seus concidadãos de Jericó num clássico exemplo de como podemos entender o dito de nosso Senhor em que "os últimos serão os primeiros".

Para muitos na cidade Zaqueu era o "maioral dos publicanos", mas o Mestre o via como um "filho de Abraão". Jesus restaura assim a sua dignidade no meio comunitário, algo que deve servir de padrão para a Igreja. Pois entre os que se convertem a Deus não há máculas do passado. Somos todos homens e mulheres restaurados, aceitos independentemente da reputação moral, o que deve nos levar a compreender melhor o alcance da graça nas nossas vidas e a caminharmos segundo o seu direcionamento no trato com o irmão. Afinal, o caído é também da mesma semente humana que nós todos. Resgatemos, portanto, o perdido.


OBS: A ilustração acima refere-se ao quatro Zaqueu do pintor dinamarquês Niels Larsen Stevns (1864-1941). Extraí do acervo virtual da Wikipédia em http://en.wikipedia.org/wiki/File:Niels_Larsen_Stevns-_Zak%C3%A6us.jpg

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