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terça-feira, 22 de outubro de 2013

"Deus não é Deus de mortos"


"Chegando alguns dos saduceus, homens que dizem não haver ressurreição, perguntaram-lhe: Mestre, Moisés nos deixou escrito que, se morrer o irmão de alguém, sendo aquele casado e não deixando filhos, seu irmão deve casar com a viúva e suscitar descendência ao falecido. Ora, havia sete irmãos: o primeiro casou e morreu sem filhos; o segundo e o terceiro também desposaram a viúva; igualmente os sete não tiveram filhos e morreram. Por fim, morreu também a mulher. Esta mulher, pois, no dia da ressurreição, de qual deles será esposa? Porque os sete a desposaram. Então, lhes acrescentou Jesus: Os filhos deste mundo casam-se e dão-se em casamento; mas os que são havidos por dignos de alcançar a era vindoura e a ressurreição dentre os mortos não casam, nem se dão em casamento. Pois não podem mais morrer, porque são iguais aos anjos e são filhos de Deus, sendo filhos da ressurreição. E que os mortos hão de ressuscitar, Moisés o indicou no trecho referente à sarça, quando chama ao Senhor o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó. Ora, Deus não é Deus de mortos, e sim de vivos; porque para ele todos vivem. Então, disseram alguns do escribas: Mestre, respondeste bem! Dali por diante, não ousaram mais interrogá-lo." (Evangelho de Lucas, capítulo 20, versículos de 27 a 40; versão e tradução ARA)

Como temos acompanhado nos últimos estudos bíblicos feitos neste blogue, nosso Senhor Jesus Cristo foi tentado pelos religiosos de sua época enquanto esteve no antigo Templo de Jerusalém. No episódio anterior, tendo os sacerdotes e escribas (estes possivelmente representantes dos fariseus) enviado seus emissários para verem se conseguiriam alguma oportunidade para acusá-lo de subversão em relação a Roma, levantando uma controvérsia sobre o pagamento de tributos a César, não obtiveram êxito. Narra o autor sagrado que "não puderam apanhá-lo em palavra alguma diante do povo, e, admirados de sua resposta, calaram-se" (verso 26).

Todavia, o fato de terem se calado não significou que os opositores de Jesus converteram-se de suas maldades. O texto bíblico fala a seguir de uma questão trazida pelos saduceus, os quais buscaram então ridicularizar o Mestre, o que se trata de uma outra estratégia sórdida de quem se encontra no poder. Trouxeram um falso problema bem hilário que, provavelmente, despertaria muitas gargalhadas entre os ouvintes presentes mas que não seria nem um pouco estratégico para unir todos os religiosos israelitas contra Jesus.

O Evangelho define os saduceus como "homens que dizem não haver ressurreição". Porém, o que sabemos a respeito desse grupo social dos tempos de Jesus, segundo a compreensão de boa parte dos pesquisadores, seria que eles só aceitavam como sendo de inspiração divina a Torá (os cinco livros de autoria atribuída a Moisés). Ou seja, o restante do conteúdo bíblico, como os profetas, os salmos e os demais livros históricos ou de sabedoria, bem como a tradição dos fariseus e a literatura apocalíptica judaica, não teriam sido considerados pelos saduceus teologicamente. Sabe-se ainda que os tais eram conservadores e aristocratas, provenientes de uma rica nobreza agrária e contavam os sumos sacerdotes entre os de sua classe.

Assim sendo, como apenas se baseavam no Pentateuco bíblico, onde inexiste qualquer menção aparentemente expressa quanto à vida além-túmulo, não criam na doutrina da ressurreição dos mortos que tanto os fariseus quanto o grupo de Jesus pregavam. E, segundo o teólogo italiano Sandro Gallazzi, as razões para tanta descrença estariam relacionadas com a alta posição que os saduceus ocupavam na sociedade israelita naquele período histórico:

"O motivo é claro: eles estão no poder, não têm nenhum interesse que as coisas mudem, não precisam de nenhum mecanismo que os leve a sonhar num outro Israel possível. O mundo, como está, é perfeito para eles. São descendentes e sequazes dos grupos que chegaram ao poder com Esdras e Neemias e que, há séculos, vêm convivendo, numa harmonia dependente, com todos os impérios que se sucederam no horizonte político dos judaítas. Uma leitura fundamentalista e reducionista da torá proclama que a 'bênção de Deus' se manifesta na abundância e na fartura que ele reserva para seus escolhidos (...) Eles, ricos e abençoados, não precisam crer na ressurreição. Isso é coisa de pobre que não quer se conformar com sua situação!" (O Evangelho de Mateus - uma leitura a partir dos pequeninosComentário Bíblico Latinoamericano. São Paulo: Fonte Editorial, 2012, pág. 452)

Interessante como que as classes dominantes são capazes de elaborar uma ideologia que lhes favoreça na manutenção do status quo vigente! Curioso é que isso veio a se repetir muitas vezes depois no cristianismo. Os burgueses calvinistas, por exemplo, viam nas suas riquezas acumuladas "sinais da graça de Deus" , como uma consequência da salvação. Logo, se tinham bens e confessassem a Jesus como o Salvador deles, o Paraíso lhes parecia como um destino garantido. Na certa, deram pouca importância à advertência de que "é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus", conforme estudamos em Lucas 19:25 (ler o artigo "O que fazer para ter a vida eterna?").

Creio que, através da leitura de um trecho do capítulo 25 de Deuteronômio, conseguiremos compreender melhor a questão. A lei mosaica, ao instituir o chamado levirato (hebr. yibum), estabelecia o casamento do irmão do falecido com a cunhada viúva afim de suscitar descendência para aquele que havia partido sem deixar sequer um filho. Senão vejamos o que consta nas Escrituras:

"Se irmãos morarem juntos, e um deles morrer sem filhos, então, a mulher do que morreu não se casará com outro estranho, fora da família; seu cunhado a tomará, e a receberá por mulher; e exercerá para com ela a obrigação de cunhado. O primogênito que ela lhe der será sucessor do nome do seu irmão falecido, para que o nome deste não se apague em Israel." (Dt 25:5-6)

Pois bem. Embora a cunhada se tornasse mulher do irmão do falecido, o primogênito seria considerado filho do ente que desencarnou de modo a Torá não se preocupa com quem será a esposa de quem (na ausência/recusa de irmãos, as tribos israelitas passaram a considerar como resgatador/redentor um outro parente próximo). O foco deve estar na preservação do nome de uma pessoa dentro da memória da comunidade. Em outras palavras, o antigo costume dos judeus era uma maneira de prestigiar a continuidade da vida.

Só que os saduceus achavam que tinham autoridade para escolherem quais as partes da Bíblia estariam de acordo com os seus interesses e ideias. E, ao agirem daquela forma, fizeram uso de um trecho das Escrituras que aponta para o mesmo motivo/objetivo da ressurreição. Pois, quando Deuteronômio fala de suscitar nome/descendência ao falecido, teremos que, necessariamente, considerar a perpetuidade da vida. O levirato, portanto, teria prefigurado a vida após a morte. E vale acrescentar que o termo anastasis ("ressurreição" em grego) possui uma significação ampla no seu idioma original e não estaria restrito apenas ao ato de alguém ser levantado dentre os mortos.

Jesus, no entanto, responde fazendo uma analogia com os anjos. Primeiramente ele diz que as relações conjugais são coisas deste mundo (verso 34). Fazem parte do nosso ambiente social que é marcado pelo domínio dos ricos sobre os pobres e dos homens sobre as mulheres. Principalmente naquela época. Mas, quando falamos em ressurreição, devemos aí considerar a possibilidade de uma outra realidade distinta da que humanamente percebemos, cujos valores seriam celestiais e não terrenos.

Sem perder tempo em discutir qual o sexo dos anjos, poderíamos dizer que, na era vindoura, quando a ressurreição tornar-se plena, seremos semelhantes a esses seres celestiais em nosso modo de existência. E, uma vez revestidos da imortalidade, não haverá mais a necessidade de nos preocuparmos com a preservação do nosso nome ou da nossa descendência porque estas seriam questões relativas ao meio sócio-cultural no qual estamos inseridos. No porvir, talvez como consequência de uma evolução/mutação humana, tudo isso serão águas passadas e suponho que estaremos envolvidos com novas relações baseadas no amor divino construindo algo totalmente diferente no Universo.

Prosseguindo, eis que Jesus fundamenta a sua resposta dentro do Pentateuco, quando o Eterno se declara o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó (Ex 3:6). E, quando Moisés recebeu essa revelação, devemos ter em nossa mente a cronologia dos acontecimentos bíblicos porque, em tal ocasião, os três citados patriarcas, ancestrais dos israelitas, já estavam mortos fazia séculos.

Ora, se Deus mencionou Abraão, Isaque e Jacó como se estivessem vivos, seria porque o seu relacionamento com eles não havia terminado. O Eterno continuou e continua sendo o Deus dos pais da nação israelita e chamou Moisés para cumprir a promessa de resgatá-los da escravidão egípcia. As almas dos patriarcas jamais deixaram de existir após essa experiência terrestre na fisicalidade e eles permanecem vivos mesmo que numa forma diferente da que conhecemos. Neste sentido, vale a pena citar os brilhantes comentários do teólogo namibiano Paul John Isaak sobre essa passagem do livro de Lucas que ele soube enriquecer acrescentando a cosmovisão dos povos africanos:

"A ressurreição não é uma fantasia inventada por sonhadores fora da realidade; é uma consequência necessária do caráter e da natureza de Deus. De uma perspectiva teológica africana, essa discussão naturalmente levanta a questão dos ancestrais. Na visão africana de mundo, a origem da vida é Deus, o qual está relacionado com o povo e com toda a criação. A vida vindo de Deus, flui para toda a sua criação, isto é, para os ancestrais, para os vivos, e, então, para as árvores, os rios, as montanhas, as florestas, os pássaros, os animais e para toda a criação. A criação inteira compartilha de proximidade e solidariedade. A união das comunidades é mantida mediante seu relacionamento com um ancestral comum que fundou a comunidade ou clã, o qual é composto dos vivos e dos mortos. Enquanto todos os mortos compartilham de uma imortalidade coletiva, aqueles ancestrais que ainda são relembrados pelo nome são referidos como 'vivos mortos' e são objeto imediato de culto dos ancestrais. Esses são os ancestrais a respeito dos quais podemos dizer que ainda permanecem conosco. De fato, a presença e a influência dos ancestrais é tão real para a maioria dos africanos que, em muitos aspectos, eles permanecem como parte da comunidade em seu papel de 'espíritos anciãos'" (Comentário Bíblico Africano, editora Mundo Cristão, 2010, pág. 1275)

Esta transcrição acima certamente é de deixar muito cristão fundamentalista perplexo. Porém, não se pode negar que a tão preconceituada cultura tradicional africana, fortemente hostilizada no meio evangélico pentecostal, pode ser uma chave para nos ajudar a compreender a visão de mundo na época bíblica. Até mesmo porque os antigos hebreus eram animistas.

Para nós que estamos no lado de cá da existência, mais importa, em termos práticos, significarmos a ideia de ressurreição quanto às ações que tomamos. Citando novamente o Sandro Gallazzi, ela deve ser encarada como "um processo permanente que começa e recomeça aqui, toda vez que o Pai do céu nos faz reerguer e nos sustenta" (op. cit; pág. 456). Ou seja, se estamos abatidos, desanimados, sem direção ou faltando propósito, o Eterno nos levanta e faz com que andemos novamente em seu caminho. Em meio às mais densas trevas, a luz divina é despertada no nosso coração por meio da fé.

Meu caro leitor, se você está prostrado, saiba que o nosso Deus é Deus de vivos. Sem fé é impossível agradar o Eterno! Portanto, levante-se do chão e vamos trabalhar pela construção do Reino nas nossas relações pessoais e comunitárias. Viva no aqui e agora a ressurreição! Um outro amanhã é possível assim como um novo Brasil com uma sociedade mais justa e uma política diferente da qual temos assistido. Podemos e devemos ser os agentes da mudança! A fé tem o potencial de escrever o futuro dessa jovem nação com letras de ouro.


OBS: A ilustração acima refere-se ao quadro A ressurreição de Cristo, do pintor alemão Mathis Gothart Niethart, conhecido como Matthias Grünewald, (1470 - 1528). Foi extraído do acervo virtual da Wikipédia conforme consta em http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Isenheimer.jpg

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