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quarta-feira, 18 de setembro de 2013

"Não eram dez os que foram curados?"


"De caminho para Jerusalém, passava Jesus pelo meio de Samaria e da Galileia. Ao entrar numa aldeia, saíram-lhe ao encontro dez leprosos, que ficaram de longe e lhe gritaram, dizendo: Jesus, Mestre, compadece-te de nós! Ao vê-los, disse-lhes Jesus: Ide e mostrai-vos aos sacerdotes. Aconteceu que, indo eles, foram purificados. Um dos dez, vendo que fora curado, voltou, dando glória a Deus em alta voz, e prostrou-se com o rosto em terra aos pés de Jesus, agradecendo-lhe; e este era samaritano. Então, Jesus lhe perguntou: Não eram dez os que foram curados? Onde estão os nove? Não houve, porventura, quem voltasse para dar glória a Deus, senão este estrangeiro? E disse-lhe: Levanta-te e vai; a tua fé te salvou." (Evangelho de Lucas, capítulo 17, versículos de 11 a 17; versão e tradução ARA)

Praticamente a metade do 3º Evangelho é contada dentro do contexto literário da peregrinação de Jesus a Jerusalém (Lc 9:51-19:44), o que, sem dúvida, possui grande significado teológico para quem decide estudar Lucas. A reunião de várias parábolas/narrativas nesta caminhada vai nos proporcionar o sabor de lermos os últimos ensinamentos do Mestre numa progressiva ordem até à Cidade Sagrada onde nosso Senhor será morto e vai ressuscitar ao terceiro dia.

Não sabemos em detalhes qual foi a rota escolhida por Jesus que parece ter sido movida pela evangelização antecedida pelo envio dos setenta discípulos (10:1-12), sendo que a informação geográfica do versículo 11 do capítulo em estudo, "pelo meio de Samaria e da Galileia", torna-se relevante para melhor compreendermos o que vai se desenrolar nesta passagem bíblica comentada. Ou seja, entre os dez leprosos curados, havia samaritanos e galileus, sendo que estes eram considerados judeus do interior enquanto aqueles estrangeiros de quinta categoria dentro do território da nação israelita. Principalmente por causa da rivalidade histórica entre judeus e samaritanos caracterizada por um comportamento hostil de ambas as partes.

Entretanto, a lepra parece ter unido a todos. Quer fossem judeus ou não, qualquer um daqueles dez homens estava cerimonialmente impuros e impedidos de entrarem no Templo. Deveriam viver em quarentena, sempre fora das aldeias, dos povoados e das cidades. Somente com o exame feito pelo sacerdote, constatando a cessação da moléstia, é que poderiam ser novamente admitidos no convívio comunitário em Israel. E, neste sentido, a lei não seria tão diferente para os samaritanos, os quais seguiam a Torá no modo deles.

No ministério de Jesus pela Galileia, um dos primeiros milagres que o Mestre realizou foi a cura de um leproso (5:12-18), conforme estudado no artigo "Quero, fica limpo!". Ali o homem condicionou a sua restauração à vontade do Senhor que, tendo quebrado os preconceitos de sua época, tocou no corpo doente daquele enfermo sem temer o contágio. O resultado foi instantâneo, mas ainda assim Jesus ordenou que o ex-leproso cumprisse com as determinações da lei mosaica apresentando-se ao sacerdote e oferecendo o sacrifício prescrito em Levítico 14.

Desta vez, porém, bastaram apenas poucas palavras sem a necessidade de qualquer toque. O milagre parece não ter acontecido de imediato. Os dez leprosos precisariam ainda se apresentar ao sacerdote confiando no que Jesus lhes teria dito. Lá eles teriam a confirmação da cura, inclusive o samaritano consultando-se com um religioso judeu no Templo de Jerusalém.

Só que a história não termina aí! O evangelista fez questão de registrar que, entre os dez leprosos purificados, apenas um retornou glorificando a Deus e veio agradecer humildemente ao judeu Jesus. O escritor sagrado acrescenta ainda que o tal homem era um samaritano, o que dá uma outra dimensão a esta narrativa, pré-anunciando o caráter universalista das boas-novas do Reino em que todos, judeus ou não, são inclusos no povo de Deus.

Na atualidade, essa passagem do Evangelho deve ser compreendida mais no aspecto da gratidão, coisa que nem sempre sabemos cultivar. Um tempo depois de recebermos o livramento de qualquer situação problemática, a nossa mente é capaz de esquecer com rapidez o benefício. Diante de novas dificuldades, passamos a reclamar da vida e uns murmuram até contra o gracioso Deus. Não raramente, as pessoas que surgiram no nosso caminho, afim de nos darem as mãos quando mais precisávamos de apoio, acabam sendo descartadas/ignoradas.

No versículo 17, Jesus indaga onde estariam os outros nove leprosos purificados. O texto bíblico não explica o motivo da ausência deles. Não diz se preferiram  cuidar dos próprios interesses ou se foram orientados pelo sacerdote a não procurarem pelo Mestre novamente que, na certa, já deveria ser acusado de heresia pelos líderes religiosos do Templo. Isto porque os saduceus veriam nos ensinos do Senhor uma ameaça aos interesses clericais.

Lendo esse belo episódio na dimensão do discipulado, encontramos aí um complemento ilustrado do estudo anterior sobre a parábola da recompensa do servo (vv. 7-10). Neste caso, o servo seria representado pelo próprio Jesus que deixou de receber o agradecimento dos outros nove leprosos. Assim, para os ministros do Evangelho, executores da obra de Deus e construtores do Reino, não se deve aguardar uma retribuição justa das pessoas pelos benefícios que lhes são proporcionados. Faz parte da natureza humana agir com ingratidão e o nosso serviço ao próximo jamais poderá virar uma troca.

Creio que aí esteja um exemplo da multiforme aplicação dos ensinos dos evangelhos. Aprendemos com a leitura dessa passagem, dentre outras coisas, que: (i) precisamos ser pessoas agradecidas, esforçando-nos para reconhecer os benefícios que recebemos; (ii) jamais nutrirmos preconceitos de raça, cor, gênero, nacionalidade e até de credo religioso quanto à capacidade evolutiva do outro; e (iii) não esperarmos nada em troca pelas boas ações desempenhadas. Aliás, nem é bom ficarmos exigindo que o outro nos reconheça. Pois, se somos suficientemente maduros, devemos saber lidar com a ingratidão alheia e darmos o tempo que for preciso, inclusive a nossa vida inteira, para que a consciência de cada um se desperte no momento certo.


OBS: A ilustração acima refere-se a uma gravura do Codex Aureus Epternacensis, manuscrito do século XI (c. 1035-1040) que se e ncontra no Museu Nacional Germânico, em Nuremberg, Alemanha. Foi extraída do acervo virtual da Wikipédia em http://it.wikipedia.org/wiki/File:CodexAureus_Cleansing_of_the_ten_lepers.jpg

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