Páginas

domingo, 8 de setembro de 2013

Entrar no Reino de Deus

"Os fariseus que eram avarentos, ouviam tudo isto e o ridicularizavam. Mas Jesus lhes disse: Vós sois os que justificais a vós mesmos diante dos homens, mas Deus conhece o vosso coração; pois aquilo que é elevado entre os homens é abominação diante de Deus. A lei e os Profetas vigoraram até João; desde esse tempo, vem sendo anunciado o evangelho do reino de Deus, e todo homem se esforça por entrar nele. E é mais fácil passar o céu e a terra do que cair um til sequer da lei. Quem repudiar sua mulher e casar com outra comete adultério; e aquele que se casa com a mulher repudiada pelo marido também comete adultério." (Lucas 16:14-18; ARA)

As igrejas evangélicas deveriam pregar mais sobre o problema da avareza que, segundo o apóstolo Paulo, é "idolatria" (Cl 3:5; Ef 5:5). Nos estudos que tenho feito sobre o Evangelho de Lucas aqui neste blogue, eis que o capítulo 16 é praticamente todo dedicado para tratar dessas questões sobre o trato das riquezas, como abordado no ensino anterior, sendo certo que há diversas outras passagens igualmente pertinentes. Aliás, o nascimento de nosso Senhor foi concebido dentro dessa visão revolucionária conforme consta no Magnificat de Maria (ver Lc 2:52-53).

Explicando a parábola do mordomo infiel, Jesus recomendou que seus discípulos empregassem as riquezas em favor da promoção do Reino de Deus, atendendo as necessidades do próximo como amigos (16:9). Deveriam ser fieis nesse ministério (versos 10-12) e se desapegarem do dinheiro (v. 13). Do contrário, como estariam servindo a Deus?

A narrativa prossegue. No versículo 14, diz o evangelista que os fariseus zombavam de Jesus porque seriam avarentos. A resposta do Mestre, porém, teve um caráter inicial mais genérico, indo além da análise específica da questão dos bens materiais, para somente então retornar à temática que será vista na parábola do rico e do Lázaro (vv. 19-31), a qual pretendo comentar posteriormente e evitar que este texto não se torne mais longo ainda.

A primeira reprovação feita aos fariseus aqui diz respeito ao comportamento de auto-justificação. Diante dos homens é fácil um religioso dizer que fez isto ou aquilo, mas somente Deus conhece o nosso interior. Nos arquivos do Onisciente estão registradas todas as nossas motivações e o Eterno vê além das aparências. Disso nenhum homem consegue fugir:

"Nada há encoberto que não venha a ser revelado; e oculto que não venha a ser conhecido. Porque tudo o que dissestes às escuras será ouvido em plena luz; e o que dissestes aos ouvidos no interior da casa será proclamado dos eirados." (Lc 12:2-3)

Deve-se considerar ainda que a atitude de alguém querer justificar a si próprio (julgar-se aceitável pela prática de boas obras) pode chegar a ser abominável diante de Deus, tal como é o pecado da idolatria. Desejar que os homens nos reconheçam como a nata moral da sociedade e fiquem louvando a nossa reputação torna-se algo que muitas das vezes é uma usurpação dos atributos divinos já que, como na resposta que será dada ao jovem rico, somente Deus é bom (Lc 18:19).

Tenho pra mim que a grande maioria dos fariseus nem fosse formada por homens ricos, diferentemente dos saduceus/sacerdotes já que estes recebiam os dízimos e as ofertas de toda a nação israelita pela arrecadação do Templo. Logo, aqueles seriam pessoas pessoas provenientes de uma classe média, provavelmente trabalhassem com algum ofício tipo o pai de Jesus, e, no máximo, receberiam parte das contribuições das congregações sinagogais pela prestação de serviços. Contudo, corriam o risco de fazerem do moralismo um ídolo nas suas vidas.

Isto é o que muitas das vezes ocorre com várias pessoas que, por não terem alguma elevada quantia em dinheiro para idolatrarem, buscam uma compensação apegando-se à reputação que possuem diante dos homens. Geralmente problemas assim ocorrem com que é muito religioso, o que dificulta muito a compreensão da graça divina nas nossas vidas e a total dependência do homem em relação à justiça de seu Criador.

Interessante quando ouço muitos dizerem que a reputação moral seria o único bem que o pobre possui, mas acho esta ideia um tanto conservadora e aprisionadora. Além de ser uma maneira de compensar as frustrações da pobreza, lembra um pouco aquilo que Napoleão Bonaparte (1769-1821) teria dito certa vez da religião como algo "que impede os pobres de assassinar os ricos". Uma frase que, em parte, concordo quando vejo os pastores conduzindo as ovelhas para um conformismo ao invés de incentivá-las a construírem o revolucionário Reino de Deus no cotidiano vivenciado comunitariamente. Por outro lado, o Evangelho pode não pregar a matança dos ricos, mas sua mensagem é capaz de neutralizar/esvaziar o poder das riquezas pelos novos valores que propõe.

A riqueza moral, todavia, jamais vai se adequar à elevada ética proposta por Jesus cuja base não se encontra numa observância externas dos mandamentos ou de regras inventadas pelos homens. O Mestre sempre pregou algo de base principiológica e que deve vir de dentro, tendo por motivação o amor e a compaixão. Algo que não só resume a Lei de Moisés e o ensino dos profetas bíblicos como também vem completar/atualizar/traduzir.

Em momento algum Jesus teve a pretensão de revogar os mandamentos do Monte Sinai. Muito pelo contrário! Porque, enquanto houver céu e terra, todas as gerações precisarão considerar os ensinos antigos (v. 17), reverenciando toda a tradição bíblica. Assim, o Evangelho anunciado pelo Mestre, e também por João Batista, veio justamente resgatar a essência da Torá judaica, dando o devido tratamento aos problemas daquele tempo tal como precisamos fazer hoje em dia diante dos desafios do presente. Esta tarefa precisamos executá-la de olho nas necessidades sociais e não com base numa moral enrijecida que é capaz de afrontar o amor e a dignidade do ser humano.

É dentro deste contexto que Jesus tocou no assunto do divórcio, o qual era um tema controvertido entre os fariseus. Isto porque havia uma divergência entre as escolas dos mestres Hillel e Shamai acerca dos motivos que autorizem o fim do vínculo conjugal. Enquanto uns interpretavam de maneira ampla o termo "coisa indecente" (Dt 24:1), outros restringiam a autorização para o marido divorciar. Só que Jesus não entre nesse debate e prova as atitudes de desamor do homem em relação à sua mulher.

O problema sobre o divórcio é tratado com mais abrangência nos dois primeiros evangelhos (Mt 19:3-12; Mc 10:2-12), quando os fariseus vieram tentar Jesus e não acho que seja possível formarmos uma doutrina a partir desses ditos atribuídos ao nosso Senhor. Aqui em Lucas, o tema é abordado secundariamente num outro contexto, mais próximo, talvez, dos exemplos do Sermão da Montanha (conf. Mt 5:31-32), porém há alguma ligação com o princípio da união de almas de Gênesis 2:24 em que serão "dois numa só carne". Este, por ser norma inspiradora, deve nortear a interpretação de Deuteronômio 24 afim de não autorizar uma conduta de banalização do instituto.

Tenho pra mim que Jesus não excluiu as possibilidades de divórcio, ou tenha taxativamente condicionado às hipóteses de infidelidade conjugal.  Menos ainda teria formulado mandamento novo porque o Mestre não veio acrescentar e nem tirar nada da Lei de Deus. Pois o que nosso Senhor buscou foi dar aos mandamentos uma dimensão verdadeiramente amorosa e nunca legalista de modo que, ao proferir ais palavras, ele estava defendendo/orientando que as pessoas buscassem ser mais tolerantes nos seus relacionamentos matrimoniais. Era um recado para que os homens não pensassem só neles mesmos, reconhecessem a condição desfavorável da mulher e fortalecessem seus elos. O casamento precisa ser resistente e nada mais atual do que falarmos sobre isso nos dias de hoje em que as pessoas não resistem às primeiras briguinhas.

A ideia do homem esforçar-se para entrar no Reino, dita no versículo 16, engloba todas as condutas que devem ser praticadas ou evitadas e para mim seria a chave interpretativa da passagem bíblica em comento. Mais adiante, Jesus falará o mesmo em relação às riquezas (Lc 18:24) e aí não podemos nos esquecer que este é o assunto principal que estamos estudando sendo o papo sobre o divórcio apenas um detalhamento de algo maior. Pois quem se separa por qualquer insatisfação ainda não compreendeu a dimensão do Reino.

Assim como o dinheiro e a reputação moral do indivíduo podem se tornar ídolos na vida de qualquer um, o esmo seria possível de se dizer  quanto à compulsão sexual. O marido que deixa a esposa porque quer casar-se com outra mais novinha que corresponda melhor aos seus desejos libidinosos não está agindo amorosamente. O seu comportamento é potencialmente destrutivo, incapaz de edificar algo duradouro e reflete uma impulsiva busca por prazer e emoções, incapaz de encontrar satisfação em outros aspectos da convivência humana. Portanto, esse cara não entendeu o que vem a ser Reino de Deus.

É assim em relação às riquezas também! Quem se apega ao dinheiro, aos bens e a qualquer tipo de status não consegue vislumbrar a superioridade que há na convivência comunitária horizontalizada. O dinheiro pode até comprar a companhia das pessoas, mas nunca o amor delas. Ter muito enquanto outros não têm nada afronta a humanidade e o seu Criador que tudo nos deu de graça para usarmos coletivamente em benefício de todos conforme cada necessidade. E, se o nosso dinheiro ou meio de vida tornou-se causa das desigualdades no planeta, devemos nos desfazer dessa fonte ruim de injustiças e usarmos o que fora fruto da iniquidade para repararmos o mal combatendo a pobreza (16:9). Será o este o exemplo dado pelo publicano Zaqueu que encontraremos adiante avançando mais umas páginas nas nossas bíblias (Lc 19:8).

Vale insistir que Jesus não condenou a posse dos bens materiais, mas entendo que precisamos ser mordomos responsáveis em relação ao uso do dinheiro empregando as coisas que temos na promoção do Reino numa visão coletiva. Assim, nosso conforto deve harmonizar-se com o bem estar do próximo. Ao recebermos nossos salários, ganhos empresariais ou benefícios de aposentaria devemos pensar um pouco na repartição, não permitindo que as despesas de consumo tornem-se tão altas a ponto de compras supérfluas impedirem que sejamos participantes de ações sociais. Já as pessoas de condição humilde, vejo que elas devem ser até destinatárias dos trabalhos assistenciais de suas igrejas, muito embora sempre é bom que todos tenham a oportunidade de serem doadores.

Certamente que a nossa mesa pode ficar ainda mais apetitosa se nela houver espaço para os pobres e necessitados. Quando doamos um pouco dos nossos ganhos na medida das nossas disponibilidades/consciência/amor, descobrimos o delicioso sabor da caridade desinteressada (sem nada esperar em troca). Algo capaz de noas satisfazer melhor do que um churrasco de carne gorda e macia. Mais do que uma festa de aniversário com bolos, refrigerantes, salgadinhos e brigadeiros. Trata-se, pois, do apetitoso banquete do Reino que já podemos degustar no aqui e agora. Uma ceia maravilhosa capaz de dar um sentido real à nossa existência.

Nenhum comentário:

Postar um comentário