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domingo, 29 de setembro de 2013

Crucificação ainda encoberta


"Tomando consigo os doze, disse-lhes Jesus: Eis que subimos para Jerusalém, e vai cumprir-se ali tudo quanto está escrito por intermédio dos profetas, no tocante ao Filho do Homem; pois será ele entregue aos gentios, escarnecido, ultrajado e cuspido; e, depois de o açoitarem, tirar-lhe-ão a vida; mas, ao terceiro dia, ressuscitará. Eles, porém, nada compreenderam acerca destas coisas; e o sentido destas palavras era-lhes encoberto, de sorte que não percebiam o que ele dizia." (Evangelho de Lucas, capítulo 18, versículos de 31 a 34; versão e tradução ARA)

Nos tempos de Jesus, o massacrado povo judeu esperava a vinda de um libertador político capaz de restaurar a soberania e a paz de uma nação dominada pelo Império Romano. A interpretação que os mestres da Lei faziam das Escrituras Sagradas nutria a expectativa da manifestação de um messias triunfante que se inspirasse no arquétipo do rei Davi - guerreiro vitorioso e que agia segundo o coração de Deus.

Os discípulos certamente não escapavam dessa visão. Sendo eles também judeus e homens de condição humilde, aguardavam encontrar apenas êxitos no ministério do Senhor. Possivelmente os milagres que testemunhavam deveriam conduzi-los a uma raciocínio igualmente triunfalista. Não passava pela cabeça de nenhum deles que o homem capaz de acalmar a tempestade (Lc 8:22-25) sofreria uma morte tão humilhante e violenta.

Jesus, no entanto, resolveu encarnar um outro tipo de messias e parece desafiar as limitadas concepções teológicas de seu tempo. Ao que tudo indica, o Mestre encontrou inspiração em partes da Bíblia como o capítulo 53 de Isaías, o qual fala da figura do "servo sofredor" também aplicável a Israel. Citações dos Salmos e dos livros dos profetas serviram para compor uma significação alternativa para a luta travada pelo novo Ungido e que mais tarde seria a mesma batalha dos seus discípulos e de todos nós.

Interessante como que o discurso do triunfalismo pode seduzir facilmente as pessoas sofridas! Num país como o Brasil, ainda cheio de pobreza e de injustiças sociais gritantes, os grupos religiosos que mais crescem são aqueles cujos líderes defendem uma teologia de prosperidade. São pseudo-pastores que oferecem uma porta larga com soluções imediatas e muitos milagres. Fizeram da pregação do Evangelho um comprimido para anestesiar a dor humana em que os cultos exibidos na TV chegam a lembrar o programa de auditório Porta da Esperança do apresentador do SBT Sílvio Santos que ocupava as horas do domingo da família brasileira entre os anos de 1984 e 1996. E uma das estratégias de marketing desses charlatões da fé seriam supostos testemunhos de pessoas vitoriosas em determinadas áreas de suas vidas, contrariando a discrição habitual de Jesus para que os benefícios recebidos permanecessem em segredo. Dá até para reproduzir a seguir uma breve entrevista fictícia de cunho proselitista ainda bem comum nas rádios evangélicas de hoje:

Pastor: Conta aqui, filho, como era a sua vida antes de conhecer a Jesus?
Irmão: Eu nasci num lar espírita e minha mãe me levava desde criança ao Centro. Éramos uma família de quatro irmãos, um deles morreu prematuro e o outro ainda criança num acidente de carro. Papai bebia muito e eu presenciava brigas horríveis no ambiente de casa. Quando estava com meus dez anos de idade, mamãe separou-se dele e foi viver com um outro cara dono de uma banca de jogo do bicho.
Pastor: E este seu padrasto era também espírita?
Irmão: Ele se dizia católico, mas parecia não ter religião. Mais tarde a minha mãe acabou levando-o para o Centro.
Pastor: E como era a vida de vocês?
Irmão: Agente tinha muita dificuldade de entendimento no lar. Principalmente eu e ele. Aos dezesseis anos, não aguentei e resolvi sair de casa. Fui morar com uma tia porque papai vivia internado na clínica de recuperação e comecei a trabalhar numa obra na Zona Sul. Depois virei camelô e, finalmente, abri um comércio próprio. Durante um tempo ganhei dinheiro, comprei carro, conheci minha esposa e tivemos dois filhos. Só que, sem mais nem menos, tudo começou a desandar.
Pastor: E você frequentava alguma religião naquela época?
Irmão: Eu nunca deixei de ser espírita até aceitar Jesus por causa da influência recebida de minha mãe. Minha esposa foi também umbandista. As duas participavam de obrigações no Centro e acho que mamãe fez até um trabalho para me separar de minha mulher no início do nosso namoro.
Pastor: Com certeza era macumba feita para Satanás destruir seu casamento! Agora conta qual foi o seu pior fundo de poço?
Irmão: Eu estava com muitas dívidas e o relacionamento com a esposa em casa não andava bem. Ela já falava até em divórcio! Um dia, encontrei entre as suas coisas o cartão de uma advogada. Tudo dava errado pra mim e, certa vez, pensei em acabar com minha vida dando um tiro na cabeça. Havia sofrido um assalto lá na loja e uma semana depois roubaram o carro. Nosso segundo filho ainda pequeno sofria intensamente com as suas crises de asma e as contas do plano de saúde encontravam-se atrasadas. Só conseguia dormir na base de tranquilizantes tarja preta e nem relações sexuais tínhamos mais!
Pastor: E como foi que você conheceu a Jesus, filho?
Irmão: Eu tinha um rapaz que trabalhava para mim como vendedor e que havia se tornado crente. Um dia contei-lhe que pretendia fechar as portas e passar para outro o comércio. Então ele abriu a sua Bíblia, deu-me um folheto e me convidou para ir numa reunião de milagres da igreja dele. Aquela não era a primeira vez que ele me chamava e, às vezes, escutava-o assistindo ao seu programa aqui na rádio. Decidi aceitar a proposta e combinamos de ir juntos. Naquele dia, muitas coisas aconteceram para que não eu fosse à igreja. Duas pessoas da família telefonaram dizendo que estavam com dificuldades e precisavam de minha presença. Um dos últimos fornecedores que me vendia à prazo só tinha espaço em sua agenda para visitar minha loja justamente no horário em que seria o culto.
Pastor: Era o diabo querendo te impedir!
Irmão: Com certeza, pastor! Ele quase me derrubou no chão porque, estando ainda no caminho do trabalho pra igreja, tropecei e caí. Só que eu estava resolvido no meu coração a buscar uma solução para o problema. Não sei como eu consegui chegar na igreja aquele dia.
Pastor: Deus certamente tinha um plano para a sua vida. Agora diz então o que aconteceu quando você entrou lá?
Irmão: Olha, pastor, nunca fui tão bem recebido. Pessoas vieram me cumprimentar e me abraçar durante o culto. Na hora da ministração da Palavra, o pregador contou tudo o que eu precisava ouvir. Parecia que eu estava assistindo o filme da minha vida inteira e comecei a chorar. Aí, quando ele resolveu  fazer uma oração para quem estivesse em dificuldades, fui logo à frente. Senti que algo mudando dentro de mim e saí de lá com o ânimo bem diferente de como entrei. No culto seguinte, eu estava lá novamente e aceitei participar do desafio das sete semanas de Jericó. Em três meses eu já tinha aceitado Jesus e estava até batizado nas águas.
Pastor: E conta um pouquinho de sua vida agora. O que Jesus tem feito por você, meu filho?
Irmão: Não tenho nem palavras! Consegui pagar todas as dívidas, meus negócios voltaram a dar certo, reatei o relacionamento com minha esposa e hoje somos uma família cristã unida. Troco de carro todo ano, faço evangelismo nas tardes de domingo com os irmãos numa comunidade pobre e meus dois filhos frequentam a escolinha bíblica. Só o caçula que ainda não sarou completamente da asma.
Pastor: Mas vai ficar bom em nome de Jesus!
Irmão: Vai ficar, sim.
Pastor: Aliás, vai ficar, não. Ele já está curado! É assim que precisamos falar. Sempre com fé. O nosso deus é vivo. Ele não está pregado numa cruz. Jesus ressuscitou!  Você crê nisso? Amém?! 
Irmão: Amém! Eu creio, pastor. E olha que a minha mãe já nem está frequentando tanto o Centro e soube que ela andou indo na igreja de uma vizinha lá da rua dela. Outro dia contaram-me que minha irmã também estaria interessada.
Pastor: E através de você, vão vir todos! É só ter fé e ser fiel, fazendo a sua parte...

Casos assim podem ter um toque de realidade e se tornam até motivadores para as pessoas assumirem posições práticas que as conduzem a resultados materialmente proveitosos. Só que muitas das vezes elas se alienam dentro de uma limitada ótica deturpadora do Evangelho de Cristo. Não há como encarar o verdadeiro discipulado sem enfrentarmos uma cruz, sem sofrermos também as perseguições e privações, sem contrariarmos os interesses dos poderosos desta Terra, sem dividirmos algo de nós em benefício do próximo e sem negarmos a muitos desejos pessoais. O episódio anterior do jovem rico (Lc 18:18-30), estudado na última postagem deste blogue, veio nos mostrar uma visão totalmente contrária ao que a maioria dos pregadores midiáticos andam falando por aí.

Ao predizer a sua morte, nosso Senhor estava era preparando a sua futura Igreja para incorporar o exemplo estabelecido para nós. Por isso, o Mestre chegou a usar termos bem vívidos. O "Filho do Homem" (Jesus não se auto-proclamava messias) seria entregue aos gentios que eram os dominadores estrangeiros do povo judeu, os quais irão zombar dele, proferir insultos, cuspir no seu rosto, castigá-lo com dolorosos açoites e, finalmente, tirarão sua vida. Só que, no terceiro dia, ele "ressuscitará"!

Sem dúvida que Jesus Cristo vive! Seu exemplo de vida obediente e humilde tornou-se um modelo arquetípico de comportamento para muitas gerações, embora poucos consigam compreender o significado da mensagem da cruz. Certa vez, numa reunião entre ativistas negros nos Estados Unidos, quando várias lideranças estavam desanimando contra as lutas de segregação racial, o pastor Martin Luther King Jr. (1929-1968) assim teria discursado em Chicago enfatizando que eles só tinham os seus corpos:

"Permitam-me dizer que, se vocês estão cansados de protestos, eu estou cansado de protestar. Estou cansado da ameaça de morte. Quero viver. Não quero ser um mártir. E há momentos em que penso se vou conseguir escapar. Estou cansado de apanhar, cansado de receber golpes, cansado de ir para a cadeia. Mas o importante não é quanto eu estou cansado; a coisa mais importante é nos livrarmos da condição que nos leva a marchar. Senhores, vocês sabem que não temos muita coisa. Não temos dinheiro suficiente. Realmente não temos muito estudo e não temos poder político. Temos apenas nossos corpos, e vocês estão pedindo que abdiquemos da única coisa que possuímos quando dizem: Não marchem."

Tal estratégia utilizada por King foi fantástica e teve um enorme efeito positivo para a luta dos negros norte-americanos pelos direitos civis. Pois, quando os ativistas, oferecendo a outra face, eram vistos por todo o mundo sendo vítimas da violência policial, sofrendo golpes de cassetetes, recebendo jatos de água e bombas de gás lacrimogênio, a nação dos Estados Unidos foi sendo tomada por um sentimento de indignação moral contra tais atrocidades, conforme relata o jornalista escritor Philip Yancey em seu livro Alma Sobrevivente: Sou Cristão, Apesar da Igreja, publicado no Brasil pela editora Mundo Cristão:

“Muitos historiadores apontam para um momento no qual o movimento no qual o movimento finalmente conquistou uma massa expressiva de apoio à causa dos direitos civis. Isto aconteceu numa ponte perto da cidade de Selma, Alabama, quando o xerife Jim Clark permitiu que seus homens, armados, avançassem sobre manifestantes negros desarmados. As tropas da cavalaria jogaram os animais a galope sobre a multidão dos manifestantes, açoitando as pessoas com seus cassetetes, rompendo cabeças e jogando pessoas no chão. Enquanto brancos gritavam em aprovação, as tropas jogaram bombas de gás lacrimogênio sobre a multidão em pânico. A maioria dos americanos teve a primeira visão dessa cena quando a rede de televisão ABC interrompeu seu filme de domingo, Julgamento em Nuremberg, para mostrar a cobertura do fato. O que os telespectadores viram sendo transmitido do Alabama guardava uma horrível semelhança com aquilo que estavam assistindo sobre a Alemanha nazista. Oito dias depois, o presidente Lyndon Johnson submeteu o projeto de Direito de Voto de 1965 ao Congresso americano.”

Embora King tenha morrido assassinado em 4 de abril de 1968, sua luta pelos direitos humanos alcançou grandes resultados na defesa dos direitos humanos e da igualdade racial. No ano de 1986, foi estabelecido um feriado nacional nos Estados Unidos em sua homenagem em que toda terceira segunda-feira de janeiro é comemorado o dia de Martin Luther King.

Como disse Jesus, se o grão de trigo que cai na terra não morrer, fica ele só. Mas, se morre, produz muito fruto. E esta foi a estratégia usada pelo Senhor muito antes de Martin Luther King, quando Ele entregou a sua vida para morrer numa cruz.

Ora, creio que a nossa vitória seja alcançada justamente por esta via estreita e não trilhando pelo caminho espaçoso do triunfalismo religioso. Só que nem sempre conseguimos ou queremos entender/aceitar isso. Trata-se de uma "cegueira" alimentada muitas das vezes pelas vulnerabilidades psicológicas que temos, mas que podem/devem ser superadas pela nossa fé como nos ensinará o próximo milagre a ser estudado sobre a cura do cego de Jericó (Lc 18:35-43). E assim, quando a nossa visão espiritual é restaurada, podemos, finalmente, seguir firmes e jubilosamente no discipulado de Cristo dando glórias a Deus. Independentemente das circunstâncias do momento.

Uma excelente semana para todos!


OBS: A ilustração acima refere-e ao quadro Cristo crucificado do artista espanhol Diego Rodrigues da Silva y Velázquez (1599-1660). A obra encontra-se atualmente no Museu Nacional do Prado, em Madri, sendo que extraí a imagem do acervo virtual da Wikipédia em http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Cristo_crucificado.jpg

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