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segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Obrigado pelo mês, Senhor!

Enfim, sobrevivi a setembro! Apesar das lutas, da bem sucedida cirurgia de Núbia e dos gastos financeiros que tivemos acima do habitual, chego ao último dia do mês dando graças a Deus por tudo o que a vida tem me proporcionado. Inclusive neste breve período.

Nos primeiros dias do mês, trabalhei muito e com suficiência. As tardes quentes e ensolaradas ajudaram as vendas de sorvete na praia de Muriqui. Veio o feriado e o calor surpreendeu em alguns momentos. Quando chegou o dia de minha mulher operar (13/09), eu já estava com alguma sobra de dinheiro e o adiantamento de parte do décimo-terceiro do benefício dela pago a ela pelo INSS contribuiu também para nos dar alguma folga.

De volta ao lar, houve vezes em que precisei assumir o trabalho da casa, deixando somente a limpeza por conta da vinda da faxineira. Lavei pratos, aprendi a cozinhar arroz branco e só deixei de fazer feijão porque não levo jeito com a panela de pressão (e minha esposa não pode ainda fazer esforço). Porém, houve um dia em que preparei um bom prato de ervilhas e confesso que os alimentos enlatados quebraram meu galho. Nossas fontes de proteína foram basicamente o queijo parmesão, nos dias de macarronada ao sugo, e aquelas latinhas de atum/sardinha com arroz e tomate.

Neste domingo (29), o tempo não colaborou tanto com as vendas porque o céu permaneceu encoberto. Fiquei em casa ontem escrevendo meus textos na internet e assisti ao jogo do Vasco contra o Bahia pela TV. Torci contra, é claro, ansiando pelos resultados do Mengão no Maracanã na espetacular vitória sobre o Criciúma que a Globo não transmitiu. Uma bela goleada para fazer o gigante rubro-negro acordar!

Concluo o mês tranquilo. Em outubro, Núbia deve fazer um exame de tomografia computadorizada em Campo Grande, bairro do Rio de Janeiro, para fins de avaliação médica e já começa suas sessões de fisioterapia em Mangaratiba. Ela ainda tem sentido algumas dores no corpo e, quando ficam mais intensas, toma um comprimido de Tramal que é medicamento feito à base de morfina. Mas os dias de resguardo pós-cirúrgico já estão terminando e espero que, com algumas semanas de tratamento fisioterápico, a nossa rotina melhore.

Com fé, prossigo glorificando o Senhor que tem cuidado maravilhosamente de nós.

O noticiário de 2063

Considerando a tendência de aumento na expectativa de vida, existem boas possibilidades de que uma pessoa de minha idade, nascida nos anos 70, viva mais uns 50 anos. No entanto, fico a pensar nas condições do nosso planeta na segunda metade do século XXI. Será que o mundo dará algum gosto para as pessoas quererem viver tanto?

Com tantas variáveis incidindo sobre as tendências sociais, políticas, econômicas, científicas, tecnológicas e culturais, qualquer projeção do cenário global para daqui cinco décadas será pura fantasia. Temos, a meu ver, um número bem grande de probabilidades. Imaginando um futuro pessimista, mas que deixe muitos de nós vivos para conferirmos os resultados de ações e omissões praticadas, imaginei esta fictícia apresentação de um noticiário da TV do ano de 2063:

Às nove e meia da noite de uma sexta-feira de setembro, um homem octagenário chega em seu apartamento de vinte metros quadrados no sexto andar do subsolo de um prédio na cidade grande cujas prestações do programa habitacional ainda pagava. Após ter trabalhado onze horas, ele precisaria acordar bem cedo no dia seguinte para dar continuidade ao serviço na empresa onde era empregado. A única distração que tinha era o telejornal.

Através de um gesto feito no sensor da residência, ligado ao computador único do apertamento, a telinha inteligente de TV é automaticamente ligada exibindo o fechamento da cômica novela das oito. Pega então uma bebida na geladeira e senta exausto no seu sofá cama.

Começa o noticiário e os dois apresentadores surgem em três dimensões como se estivessem dentro da casa. Ou melhor, como se o telespectador fosse sugado para o interior da TV. Começam então a falar:

- Brasília, 28 de setembro. O Congresso Nacional reunindo-se extraordinariamente aprova mais uma mudança no Estatuto da Terceira Idade. Passam a ser considerados idosos os cidadãos com 110 anos.

- Houve manifestações violentas em todo o país e mais de duzentas pessoas mascaradas foram presas pela polícia. Sindicalistas protestavam também contra a proposta de aumento da idade mínima da aposentadoria de 100 para 120 anos.

- Um ataque com armas nanotecnológicas deixou oito mil mortos no Oriente Médio e até agora nenhum grupo terrorista assumiu a autoria do atentado.

- Nos Estados Unidos o governo emitiu alerta máximo contra furacões. É esperada a tempestade mais forte dos últimos dez mil anos.

- O dólar torna a subir e, segundo a Fundação Getúlio Vargas, a inflação da semana passada foi de 43%.

- É criado o imposto sobre a propriedade de animais domésticos.

- Um avião cai misteriosamente no deserto amazônico sem deixar pistas e a aeronáutica ainda não pôde iniciar as buscas por falta de combustível.

- O advogado do ex-senador Carlos Antonio Tetraneto, acusado de desviar um trilhão de reais novos da Fundação José Sarney, conseguiu um habeas corpus no Supremo Tribunal Federal e vai responder ao processo em liberdade.

- Robôs assassinos voltam a assaltar motoristas na Avenida Luís Inácio Lula, em São Paulo.

- Evangélicos fazem show gospel em Belo Horizonte e pastores protestam contra a nova lei que determina a destruição de sêmen e de óvulos nos bancos genéticos de pessoas falecidas.

- A governadora do Rio Mariana Menininha anunciou que vai construir um terceiro Maracanã para a Copa de 2070.

- Meteorologistas estão prevendo calor de 50 graus para este final de semana.

- E assistam ainda os gols do Flamengo pela série B do Brasileirão.

- Tudo isso você vai ver em instantes depois da propaganda eleitoral obrigatória do Partido Zoofilista Islâmico Brasileiro.

Com raiva dos políticos, o homem resolve desligar a TV e, naquele mesmo instante, ocorre mais um apagão de energia. Sem nada para fazer, ele vai dormir.


OBS: Este texto foi originariamente publicado no blogue da Confraria dos Pensadores Fora da Gaiola em http://cpfg.blogspot.com.br/2013/09/o-noticiario-de-2063.html onde sugiro que sejam feitos os comentários a esta postagem.

domingo, 29 de setembro de 2013

Crucificação ainda encoberta


"Tomando consigo os doze, disse-lhes Jesus: Eis que subimos para Jerusalém, e vai cumprir-se ali tudo quanto está escrito por intermédio dos profetas, no tocante ao Filho do Homem; pois será ele entregue aos gentios, escarnecido, ultrajado e cuspido; e, depois de o açoitarem, tirar-lhe-ão a vida; mas, ao terceiro dia, ressuscitará. Eles, porém, nada compreenderam acerca destas coisas; e o sentido destas palavras era-lhes encoberto, de sorte que não percebiam o que ele dizia." (Evangelho de Lucas, capítulo 18, versículos de 31 a 34; versão e tradução ARA)

Nos tempos de Jesus, o massacrado povo judeu esperava a vinda de um libertador político capaz de restaurar a soberania e a paz de uma nação dominada pelo Império Romano. A interpretação que os mestres da Lei faziam das Escrituras Sagradas nutria a expectativa da manifestação de um messias triunfante que se inspirasse no arquétipo do rei Davi - guerreiro vitorioso e que agia segundo o coração de Deus.

Os discípulos certamente não escapavam dessa visão. Sendo eles também judeus e homens de condição humilde, aguardavam encontrar apenas êxitos no ministério do Senhor. Possivelmente os milagres que testemunhavam deveriam conduzi-los a uma raciocínio igualmente triunfalista. Não passava pela cabeça de nenhum deles que o homem capaz de acalmar a tempestade (Lc 8:22-25) sofreria uma morte tão humilhante e violenta.

Jesus, no entanto, resolveu encarnar um outro tipo de messias e parece desafiar as limitadas concepções teológicas de seu tempo. Ao que tudo indica, o Mestre encontrou inspiração em partes da Bíblia como o capítulo 53 de Isaías, o qual fala da figura do "servo sofredor" também aplicável a Israel. Citações dos Salmos e dos livros dos profetas serviram para compor uma significação alternativa para a luta travada pelo novo Ungido e que mais tarde seria a mesma batalha dos seus discípulos e de todos nós.

Interessante como que o discurso do triunfalismo pode seduzir facilmente as pessoas sofridas! Num país como o Brasil, ainda cheio de pobreza e de injustiças sociais gritantes, os grupos religiosos que mais crescem são aqueles cujos líderes defendem uma teologia de prosperidade. São pseudo-pastores que oferecem uma porta larga com soluções imediatas e muitos milagres. Fizeram da pregação do Evangelho um comprimido para anestesiar a dor humana em que os cultos exibidos na TV chegam a lembrar o programa de auditório Porta da Esperança do apresentador do SBT Sílvio Santos que ocupava as horas do domingo da família brasileira entre os anos de 1984 e 1996. E uma das estratégias de marketing desses charlatões da fé seriam supostos testemunhos de pessoas vitoriosas em determinadas áreas de suas vidas, contrariando a discrição habitual de Jesus para que os benefícios recebidos permanecessem em segredo. Dá até para reproduzir a seguir uma breve entrevista fictícia de cunho proselitista ainda bem comum nas rádios evangélicas de hoje:

Pastor: Conta aqui, filho, como era a sua vida antes de conhecer a Jesus?
Irmão: Eu nasci num lar espírita e minha mãe me levava desde criança ao Centro. Éramos uma família de quatro irmãos, um deles morreu prematuro e o outro ainda criança num acidente de carro. Papai bebia muito e eu presenciava brigas horríveis no ambiente de casa. Quando estava com meus dez anos de idade, mamãe separou-se dele e foi viver com um outro cara dono de uma banca de jogo do bicho.
Pastor: E este seu padrasto era também espírita?
Irmão: Ele se dizia católico, mas parecia não ter religião. Mais tarde a minha mãe acabou levando-o para o Centro.
Pastor: E como era a vida de vocês?
Irmão: Agente tinha muita dificuldade de entendimento no lar. Principalmente eu e ele. Aos dezesseis anos, não aguentei e resolvi sair de casa. Fui morar com uma tia porque papai vivia internado na clínica de recuperação e comecei a trabalhar numa obra na Zona Sul. Depois virei camelô e, finalmente, abri um comércio próprio. Durante um tempo ganhei dinheiro, comprei carro, conheci minha esposa e tivemos dois filhos. Só que, sem mais nem menos, tudo começou a desandar.
Pastor: E você frequentava alguma religião naquela época?
Irmão: Eu nunca deixei de ser espírita até aceitar Jesus por causa da influência recebida de minha mãe. Minha esposa foi também umbandista. As duas participavam de obrigações no Centro e acho que mamãe fez até um trabalho para me separar de minha mulher no início do nosso namoro.
Pastor: Com certeza era macumba feita para Satanás destruir seu casamento! Agora conta qual foi o seu pior fundo de poço?
Irmão: Eu estava com muitas dívidas e o relacionamento com a esposa em casa não andava bem. Ela já falava até em divórcio! Um dia, encontrei entre as suas coisas o cartão de uma advogada. Tudo dava errado pra mim e, certa vez, pensei em acabar com minha vida dando um tiro na cabeça. Havia sofrido um assalto lá na loja e uma semana depois roubaram o carro. Nosso segundo filho ainda pequeno sofria intensamente com as suas crises de asma e as contas do plano de saúde encontravam-se atrasadas. Só conseguia dormir na base de tranquilizantes tarja preta e nem relações sexuais tínhamos mais!
Pastor: E como foi que você conheceu a Jesus, filho?
Irmão: Eu tinha um rapaz que trabalhava para mim como vendedor e que havia se tornado crente. Um dia contei-lhe que pretendia fechar as portas e passar para outro o comércio. Então ele abriu a sua Bíblia, deu-me um folheto e me convidou para ir numa reunião de milagres da igreja dele. Aquela não era a primeira vez que ele me chamava e, às vezes, escutava-o assistindo ao seu programa aqui na rádio. Decidi aceitar a proposta e combinamos de ir juntos. Naquele dia, muitas coisas aconteceram para que não eu fosse à igreja. Duas pessoas da família telefonaram dizendo que estavam com dificuldades e precisavam de minha presença. Um dos últimos fornecedores que me vendia à prazo só tinha espaço em sua agenda para visitar minha loja justamente no horário em que seria o culto.
Pastor: Era o diabo querendo te impedir!
Irmão: Com certeza, pastor! Ele quase me derrubou no chão porque, estando ainda no caminho do trabalho pra igreja, tropecei e caí. Só que eu estava resolvido no meu coração a buscar uma solução para o problema. Não sei como eu consegui chegar na igreja aquele dia.
Pastor: Deus certamente tinha um plano para a sua vida. Agora diz então o que aconteceu quando você entrou lá?
Irmão: Olha, pastor, nunca fui tão bem recebido. Pessoas vieram me cumprimentar e me abraçar durante o culto. Na hora da ministração da Palavra, o pregador contou tudo o que eu precisava ouvir. Parecia que eu estava assistindo o filme da minha vida inteira e comecei a chorar. Aí, quando ele resolveu  fazer uma oração para quem estivesse em dificuldades, fui logo à frente. Senti que algo mudando dentro de mim e saí de lá com o ânimo bem diferente de como entrei. No culto seguinte, eu estava lá novamente e aceitei participar do desafio das sete semanas de Jericó. Em três meses eu já tinha aceitado Jesus e estava até batizado nas águas.
Pastor: E conta um pouquinho de sua vida agora. O que Jesus tem feito por você, meu filho?
Irmão: Não tenho nem palavras! Consegui pagar todas as dívidas, meus negócios voltaram a dar certo, reatei o relacionamento com minha esposa e hoje somos uma família cristã unida. Troco de carro todo ano, faço evangelismo nas tardes de domingo com os irmãos numa comunidade pobre e meus dois filhos frequentam a escolinha bíblica. Só o caçula que ainda não sarou completamente da asma.
Pastor: Mas vai ficar bom em nome de Jesus!
Irmão: Vai ficar, sim.
Pastor: Aliás, vai ficar, não. Ele já está curado! É assim que precisamos falar. Sempre com fé. O nosso deus é vivo. Ele não está pregado numa cruz. Jesus ressuscitou!  Você crê nisso? Amém?! 
Irmão: Amém! Eu creio, pastor. E olha que a minha mãe já nem está frequentando tanto o Centro e soube que ela andou indo na igreja de uma vizinha lá da rua dela. Outro dia contaram-me que minha irmã também estaria interessada.
Pastor: E através de você, vão vir todos! É só ter fé e ser fiel, fazendo a sua parte...

Casos assim podem ter um toque de realidade e se tornam até motivadores para as pessoas assumirem posições práticas que as conduzem a resultados materialmente proveitosos. Só que muitas das vezes elas se alienam dentro de uma limitada ótica deturpadora do Evangelho de Cristo. Não há como encarar o verdadeiro discipulado sem enfrentarmos uma cruz, sem sofrermos também as perseguições e privações, sem contrariarmos os interesses dos poderosos desta Terra, sem dividirmos algo de nós em benefício do próximo e sem negarmos a muitos desejos pessoais. O episódio anterior do jovem rico (Lc 18:18-30), estudado na última postagem deste blogue, veio nos mostrar uma visão totalmente contrária ao que a maioria dos pregadores midiáticos andam falando por aí.

Ao predizer a sua morte, nosso Senhor estava era preparando a sua futura Igreja para incorporar o exemplo estabelecido para nós. Por isso, o Mestre chegou a usar termos bem vívidos. O "Filho do Homem" (Jesus não se auto-proclamava messias) seria entregue aos gentios que eram os dominadores estrangeiros do povo judeu, os quais irão zombar dele, proferir insultos, cuspir no seu rosto, castigá-lo com dolorosos açoites e, finalmente, tirarão sua vida. Só que, no terceiro dia, ele "ressuscitará"!

Sem dúvida que Jesus Cristo vive! Seu exemplo de vida obediente e humilde tornou-se um modelo arquetípico de comportamento para muitas gerações, embora poucos consigam compreender o significado da mensagem da cruz. Certa vez, numa reunião entre ativistas negros nos Estados Unidos, quando várias lideranças estavam desanimando contra as lutas de segregação racial, o pastor Martin Luther King Jr. (1929-1968) assim teria discursado em Chicago enfatizando que eles só tinham os seus corpos:

"Permitam-me dizer que, se vocês estão cansados de protestos, eu estou cansado de protestar. Estou cansado da ameaça de morte. Quero viver. Não quero ser um mártir. E há momentos em que penso se vou conseguir escapar. Estou cansado de apanhar, cansado de receber golpes, cansado de ir para a cadeia. Mas o importante não é quanto eu estou cansado; a coisa mais importante é nos livrarmos da condição que nos leva a marchar. Senhores, vocês sabem que não temos muita coisa. Não temos dinheiro suficiente. Realmente não temos muito estudo e não temos poder político. Temos apenas nossos corpos, e vocês estão pedindo que abdiquemos da única coisa que possuímos quando dizem: Não marchem."

Tal estratégia utilizada por King foi fantástica e teve um enorme efeito positivo para a luta dos negros norte-americanos pelos direitos civis. Pois, quando os ativistas, oferecendo a outra face, eram vistos por todo o mundo sendo vítimas da violência policial, sofrendo golpes de cassetetes, recebendo jatos de água e bombas de gás lacrimogênio, a nação dos Estados Unidos foi sendo tomada por um sentimento de indignação moral contra tais atrocidades, conforme relata o jornalista escritor Philip Yancey em seu livro Alma Sobrevivente: Sou Cristão, Apesar da Igreja, publicado no Brasil pela editora Mundo Cristão:

“Muitos historiadores apontam para um momento no qual o movimento no qual o movimento finalmente conquistou uma massa expressiva de apoio à causa dos direitos civis. Isto aconteceu numa ponte perto da cidade de Selma, Alabama, quando o xerife Jim Clark permitiu que seus homens, armados, avançassem sobre manifestantes negros desarmados. As tropas da cavalaria jogaram os animais a galope sobre a multidão dos manifestantes, açoitando as pessoas com seus cassetetes, rompendo cabeças e jogando pessoas no chão. Enquanto brancos gritavam em aprovação, as tropas jogaram bombas de gás lacrimogênio sobre a multidão em pânico. A maioria dos americanos teve a primeira visão dessa cena quando a rede de televisão ABC interrompeu seu filme de domingo, Julgamento em Nuremberg, para mostrar a cobertura do fato. O que os telespectadores viram sendo transmitido do Alabama guardava uma horrível semelhança com aquilo que estavam assistindo sobre a Alemanha nazista. Oito dias depois, o presidente Lyndon Johnson submeteu o projeto de Direito de Voto de 1965 ao Congresso americano.”

Embora King tenha morrido assassinado em 4 de abril de 1968, sua luta pelos direitos humanos alcançou grandes resultados na defesa dos direitos humanos e da igualdade racial. No ano de 1986, foi estabelecido um feriado nacional nos Estados Unidos em sua homenagem em que toda terceira segunda-feira de janeiro é comemorado o dia de Martin Luther King.

Como disse Jesus, se o grão de trigo que cai na terra não morrer, fica ele só. Mas, se morre, produz muito fruto. E esta foi a estratégia usada pelo Senhor muito antes de Martin Luther King, quando Ele entregou a sua vida para morrer numa cruz.

Ora, creio que a nossa vitória seja alcançada justamente por esta via estreita e não trilhando pelo caminho espaçoso do triunfalismo religioso. Só que nem sempre conseguimos ou queremos entender/aceitar isso. Trata-se de uma "cegueira" alimentada muitas das vezes pelas vulnerabilidades psicológicas que temos, mas que podem/devem ser superadas pela nossa fé como nos ensinará o próximo milagre a ser estudado sobre a cura do cego de Jericó (Lc 18:35-43). E assim, quando a nossa visão espiritual é restaurada, podemos, finalmente, seguir firmes e jubilosamente no discipulado de Cristo dando glórias a Deus. Independentemente das circunstâncias do momento.

Uma excelente semana para todos!


OBS: A ilustração acima refere-e ao quadro Cristo crucificado do artista espanhol Diego Rodrigues da Silva y Velázquez (1599-1660). A obra encontra-se atualmente no Museu Nacional do Prado, em Madri, sendo que extraí a imagem do acervo virtual da Wikipédia em http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Cristo_crucificado.jpg

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

O que fazer para ter a vida eterna?


"Certo homem de posição perguntou-lhe: Bom Mestre, que farei para herdar a vida eterna? Respondeu-lhe Jesus: Por que me chamas bom? Ninguém é bom, senão um, que é Deus. Sabes os mandamentos: Não adulterarás, não matarás, não furtarás, não dirás falso testemunho, honra a teu pai e a tua mãe. Replicou ele: Tudo isso tenho observado desde a minha juventude. Ouvindo-o Jesus, disse-lhe: Uma coisa ainda e falta: vende tudo o que tens, dá aos pobres e terás um tesouro nos céus; depois, vem e segue-me. Mas, ouvindo ele estas palavras, ficou muito triste, porque era riquíssimo. E Jesus, vendo-o assim triste, disse: Quão dificilmente entrarão no reino de Deus os que têm riquezas! Porque é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus. E os que ouviram disseram: Sendo assim, quem pode ser salvo? Mas ele respondeu: Os impossíveis dos homens são possíveis para Deus. E disse Pedro: Eis que nós deixamos nossa casa e te seguimos. Respondeu-lhes Jesus: Em verdade vos digo que ninguém há que tenha deixado casa, ou mulher, ou irmãos, ou pais, ou filhos, por causa do reino de Deus, que não receba, no presente, muita vezes mais e, no mundo por vir, a vida eterna." (Evangelho de Lucas, capítulo 18, versículos 18 a 30; versão e tradução ARA, sendo meus os destaques em negrito)

Como temos visto nos nossos estudos sobre o Evangelho de Lucas, Jesus pregou repetidas vezes sobre o perigo das riquezas. Possuir e administrar bens, por si só, nunca foi pecado nas Escrituras Sagradas, mas o apego ao dinheiro e o seu uso indevido são coisas manifestamente reprováveis. Assim, no episódio do homem rico, que é narrado também nos outros dois evangelhos sinóticos (Mc 10:17-31; Mt 19:16-30), encontramos mais um forte exemplo do ensino do grande Mestre. Algo que guarda uma forte relação com a passagem anterior quando o Senhor teria enfatizado sobre a necessidade de alguém receber o Reino de Deus como uma criança de colo (verso 17).

Inicialmente, o que mais chama a minha atenção seria a pergunta do homem feita a Jesus que, no 1º Evangelho, nos é apresentado  como sendo um "jovem". Suas palavras parecem expressar uma preocupação voltada para o seu bem-estar pessoal após o túmulo. Ele já possuía uma confortável posição na Terra e pretendia conseguir algo a mais no futuro: a vida eterna. Trata-se da lógica egoísta de adquirir tudo para si, mas sem nada compartilhar com o próximo.

Contudo, ricos e pobres um dia passarão pela morte e, quando este fato acontece, todos perdemos os bens amealhados. O homem humilde deixa somente lembranças por algumas décadas, ou séculos, enquanto a partida do endinheirado origina uma guerra entre os seus herdeiros. Só que, daqui para lá, não há como carregar absolutamente nada de modo que os antigos faraós egípcios certamente cometeram tremendos enganos ao entulharem de coisas as suas pirâmides por esperarem fazer uso de tais objetos na outra vida.

A resposta de Jesus ao jovem rico é então acompanhada de mais uma pergunta. Por que ele seria considerado "bom"? Ou seja, para o Mestre nenhum homem deveria ser digno de receber esse adjetivo. Bom só existe um que é Deus, o único Ser Perfeito. Logo, seria um erro qualquer um de nós se considerar bom a ponto de achar que pode merecer algo do nosso Criador.

Dando continuidade, nosso Senhor citou a guarda dos principais preceitos da lei divina que todo judeu com mais de 12/13 anos de idade já conhecia ou, do contrário, não seria um bar mitzvah ("filho do mandamento"). Assim, o homem replica estar observando tudo aquilo desde a sua juventude. Pelo menos, na superfície da letra, ele estava seguindo aquelas principais normas do Monte Sinai (Ex 20:12-16), as quais Jesus citou.

Ocorre que servir a Deus não pode se resumir a uma mera observância de preceitos bíblicos. Nem mesmo da própria caridade! É preciso vivenciar a instrução divina e a colocar em prática dentro do nosso contexto de vida, conforme o desígnio do Altíssimo. O Mestre propõe então ao homem quatro ações no versículo 22 que destaquei em negrito: vender tudo e distribuir aos pobres, depois vir e segui-lo.

Curioso é que Jesus lhe pede para desfazer-se de tudo e não de uma parte. À primeira vista, isto parece ser uma loucura, ainda mais para quem nunca deve ter colocado as mãos num martelo ou numa enxada para trabalhar. Como sobreviver depois de dar tudo aos pobres se ele nem devia ter formação para serviços braçais? Como conseguir passar as suas noites acompanhando pelos povoados e cidades de Israel um pregador que nem tinha onde reclinar a cabeça (Lc 9:58)?

Ontem, enquanto eu estava a rascunhar este texto no meu caderno de anotações (não costumo postar diretamente no computador), veio-me a ideia sobre o desemprego que uma decisão radial daquele jovem rico poderia causar, isto é, caso ele resolvesse vender todos os seus negócios seguindo literalmente as recomendações do Senhor. Sendo a economia da época essencialmente rural, suponho que ele fosse dono de terras e aí pergunto quantas famílias não deveriam depender das suas fazendas trabalhando no plantio, na colheita, no armazenamento dos grãos, no pastoreio do gado e na comercialização dos produtos? Um outro que adquirisse suas glebas não poderia ser um padrão pior que roubasse as horas suadas de labor dos empregados, mentisse, matasse, cometesse assédio sexual contra as suas servas e desonrasse os empregados mais idosos? E no que mudaria o sistema exploratório o fato de alguém desfazer-se dos bens e consumi-los aliviando a fome de alguns pobres por algum tempo mas sem conseguir acabar com a causa da miséria?

Levando em conta esses questionamentos consideráveis, chego à conclusão de que o ensino de Jesus neste episódio seria mais de base principiológica. Vender tudo não pode significar a aniquilação de uma empresa! A ideia do Evangelho em sua essência seria adotarmos uma outra lógica na administração dos nossos recursos. O centro de tudo deve ser a promoção do bem do nosso irmão e não visarmos apenas o nosso interesse particular. Deste modo, se queremos entender o texto, precisamos ir além da literalidade. Senão vejamos o significado que pode haver em cada um dos quatro verbos mencionados na perícope citada:

- Vender: Jesus estava propondo ao homem que se desapegasse de tudo o quanto possuía. Este seria o primeiro passo na sua conversão. O coração dele deixaria de estar nas riquezas para focar nas coisas do Reino de Deus. Sem tal mudança interior, nada se realizaria. Ele continuaria sendo um rico religioso, mas infrutífero.

- Distribuir os bens: Uma vez desapegado intimamente das riquezas, ele passaria a doar o que tinha para o benefício dos pobres. Precisaria procurar pessoas que necessitassem de ajuda e/ou pedir a terceiros para lhe ajudarem nessa tarefa. E, como a sua fortuna era muita, como nos diz  verso 23, talvez seria preciso um tempo enorme para conseguir doar tudo. Na atualidade, se um bilionário resolvesse fazer algo semelhante, o seu dinheiro até se multiplicaria enquanto estivesse dividindo-o e as suas necessidades materiais nem deixariam de ser satisfeitas. Lembremos do milagre da multiplicação dos pães!

- Vir: Após aprender a compartilhar e a ser útil a todos (lógico que o seu dinheiro não precisava acabar), o homem estaria pronto para caminhar em direção ao discipulado. Só com a experimentação prática da repartição é que ele poderia compreender não só com a mente, mas com a alma, os profundos ensinamentos de Jesus. Do contrário, a escola do Mestre seria incapaz de lhe acrescentar qualquer coisa. Estaria  perdendo o seu tempo.

- Seguir a Jesus: Finalmente, vivendo já o discipulado, ele conseguiria ser um agente da revolução do Reino de Deus. Se as ideias do Mestre propunham uma inversão de valores, como poderia um rico apegado aos seus bens seguir verdadeiramente um líder que pretendesse retirar o que a classe dominante tinha para repartir entre os pobres? Você conseguiria imaginar um burguês do século XIX financiando Karl Marx na Europa daquele tempo? No entanto, se o patrão passa a ser como um proletário e muda os objetivos de seu negócio, a empresa que ele tem vira uma estratégica fonte de recursos para custear as ações da caridade e de conscientização do grupo revolucionário.

Considerem que, após a repartição dos seus bens, o homem rico poderia encontrar "um tesouro nos céus", algo que obteria estando ainda vivo na Terra. Jesus não diz que a vida eterna esteja somente no além-túmulo, mas deve ser experimentada aqui pela descoberta da nossa razão existencial. Vale ressaltar que o homem não é um ser separado de toda a sua espécie e nem do Universo. Além disso, a vida, por ser um partilhar do nosso Criador, deve ser entendida como a manifestação de um Todo por mais que vejamos a nós mesmos como consciências individuais.

Sobre o sentimento de tristeza do homem rico, vejo-o com naturalidade porque se tratava de uma pessoa ainda apegada aos seus bens naquele momento, estando dividido. Não acho que ele teria se importado com o bem estar dos seus empregados como eu argumentaria com Jesus se estivesse no lugar dele. A preocupação principal do cara ainda era consigo mesmo. Tratava-se do horror de perder o seu status, o conforto e a sua estima na sociedade por mais que recebesse bajulações falsas dos que o procuravam por interesse. Com isso, todas essas preocupações podem tê-lo abrasado como as chamas infernais de uma fornalha, gerando aquela angustiosa sensação quando somos chamados para decidir algo tendo que abrir mão de qualquer coisa importante.

Muito difícil um rico dar o seu passo em direção ao Reino. Aderir a uma religião, virar católico/evangélico/espírita, ou ainda se filiar à ADHONP (Associação dos Homens de Negócio do Evangelho Pleno) seria moleza porque não exige grande esforço nas aparências externas. Mas como aderir a algo que vai contra o interesse das riquezas que possuímos? É preciso muita fé! Só assim é que o homem consegue vencer a falsa sensação de segurança proporcionada pelos bens materiais.

Jesus prossegue fazendo daquela situação uma oportunidade para ensinar os seus ouvintes sobre o grande perigo das riquezas (até a gestão dos negócios pode virar um risco para espiritualidade). Mais fácil é um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar na dimensão do Reino! Aí eu diria que o dinheiro pode acabar virando um ídolo em que, diante de determinados casos, só superamos a avareza desfazendo mesmo de tudo e colocando o dinheiro nas mãos dos outros.

Lendo o que Jesus teria dito, fico a indagar se seria difícil ou impossível um rico ser salvo? Porém, é certo que a menção do camelo seria metafórica, pouco importando se o Senhor estaria se referindo ao animal ou a umas cordas bem grossas uadas para amarrar os navios naquele tempo, as quais recebiam o mesmo nome do mencionado quadrúpede. A meu sentir, o Mestre foi propositalmente hiperbólico para enfatizar a necessidade de desapego que, no caso das pessoas ricas, exigiria um esforço ainda maior da parte delas tendo em vista a distância abismal que as separa dos pobres, aos quais pertenceria o Reino (Lc 6:20). Seria como na parábola do rico e do Lázaro em que as desigualdades sócio-econômicas formam um verdadeiro fosso entre um lado e o outro (16:26).

A pergunta dos ouvintes vai nos conduzir a um questionamento bem interessante. Pois, se Jesus havia dito ao homem rico que vendesse tudo, como as demais pessoas poderiam ser salvas se elas ainda deveriam possuir algum bem material mesmo não sendo de alta posição na sociedade? O que poderiam fazer?!

Verdade é que não podemos fazer absolutamente nada neste sentido. A salvação é um dom gratuito do Criador assim como a nossa vida. Parece até contraditório, mas não é. O homem pode dispor de tudo o que possui e guardar o Dez Mandamentos, mas não conseguirá jamais comprar a salvação porque esta não se vende. Ela é dada a todos generosamente e será sempre impossível  alcançá-la por meio dos méritos pessoais.

Ora, mas o que é impossível para os homens é possível  para Deus! Os discípulos que, semelhantemente a Pedro, tinham deixado tudo para seguirem a Jesus, não precisavam alimentar nas suas mentes vãs preocupações sobre como seria o futuro deles por toda a eternidade. Se abrissem os olhos, veriam que já estavam recebendo o Reino de Deus no presente, tesouro este que é eterno e se encontra dentro da gente. Aliás, esta é uma dádiva liberada a todos os homens indistintamente, mas que nem todos aqui conseguem descobri-la porque se alienam. Sobretudo quando se envolvem com as riquezas.

A doação das riquezas nunca será ato de barganha para o homem adquirir a vida eterna. Porém, as atitudes que tomamos são indissociáveis em relação à fé e ao nosso estado existencial. Logo, devemos aprender a viver para o Reino no partilhar de Deus! Esta é a proposta do texto bíblico comentado em sua essência. Colocando tal objetivo em primeiro plano, todas as outras decisões precisarão ser tomadas em conformidade com a vontade divina na administração dos recursos por nós. Inclusive quanto aos bens das igrejas que, na grande maioria dos casos, constituem patrimônios de excessivo valor pecuniário, capazes de sugar a nossa atenção para geri-los.


OBS: A ilustração acima refere-se ao quadro Cristo e o jovem rico do pintor alemão Johann Michael Ferdinand Heirich Hofmann (1824-1911). Foi pintado em junho de 1889 e se encontra atualmente na Riverside Church, em Nova York. Extraí do acervo virtual da Wikipédia em http://en.wikipedia.org/wiki/File:Hoffman-ChristAndTheRichYoungRuler.jpg

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

"Deixai vir a mim os pequeninos"


"Traziam-lhe também as crianças, para que as tocasse, e os discípulos, vendo, os repreendiam. Jesus, porém, chamando-os para junto de si, ordenou: Deixai vir a mim os pequeninos e não os embaraceis, porque dos tais é o reino de Deus. Em verdade vos digo: Quem não receber o reino de Deus como uma criança de maneira alguma entrará nele." (Evangelho de Lucas, capítulo 18, versículos de 15 a 17; versão e tradução ARA)

Em Lucas, o contexto literário no qual é narrado o episódio em que Jesus abençoa as criancinhas é significativamente diferente da fonte original de Marcos. Tanto no 2º Evangelho quanto no 1º (conferir com Mt 19:13-15; Mc 10:13-16), a perícope anterior nestes livros trata da questão do divórcio. Aqui, porém, a experiência parece dar continuidade ao ensinamento discipular da parábola do fariseu e do publicano, a qual abordamos no último estudo bíblico deste blogue.

Nosso Senhor, além de valorizar a experiência do pecador arrependido (das pessoas conscientes de não terem nenhum mérito moral diante do Pai), encontra nas crianças de colo uma figura capaz de representar o comportamento ideal de quem quer buscar o Reino de Deus. E, com isto, o Mestre mostra aos seus seguidores a importância de acessibilidade no grupo que depois se tornaria a sua futura Igreja.

Como se lê no texto em comento, as crianças foram trazidas a Jesus para que ele as tocasse, o que, certamente, era um gesto litúrgico indicativo de identificação e de comunhão na vida comunitária judaica de seu tempo. Em Marcos e em Mateus, o autor sagrado chega a dizer que se tratasse de uma imposição de mãos, o que só vem confirmar tal suposição. Mas os discípulos, ainda aprendizes dos ensinamentos do Reino, estavam de alguma maneira impedindo a aproximação dos pequeninos e criando obstáculos. Talvez repreendendo as mães dos menores porque, provavelmente, eram elas que estariam trazendo os filhos para perto do Mestre.

A lição que podemos extrair daí é que a Igreja deve ser um lugar de aproximação e de comunhão para todos, sejam pecadores, pobres, mulheres, deficientes, homossexuais, ex-presidiários, dependentes químicos e crianças. Ninguém deve ser desligado os afastado de nossas comunidades eclesiásticas! Se na parábola do fariseu e do publicano, a estrutura inacessível do Templo judaico promovia uma sensação de distanciamento para o coletores de impostos, considerados indignos pela profissão exercida, o mesmo não pode ocorrer no nosso ambiente, o qual precisa tornar-se verdadeiramente acolhedor. Os discípulos careciam desenvolver uma pureza que não discrimina e nem condena, livres da hierarquização, dos autoritarismos, dos machismos ou de qualquer outro comportamento excludente.

Ao afirmar que das crianças é o Reino, o Mestre também desejou que os discípulos adquirissem o entendimento sobre quem deve ocupar o centro do ministério eclesiástico. O objetivo deverá ser sempre o de servirmos as pessoas, cuidarmos do nosso irmão e termos uma preocupação especial para com os indivíduos mais frágeis. Assim, inegavelmente, o infante simbolizaria o ser que, devido à sua condição, só tem a receber de nós sem nada poder retribuir imediatamente, dando um trabalhão para os pais ou tutores.

Numa abordagem mais literal, podemos questionar como anda o ministério infantil dentro de nossas igrejas? Será que estamos realmente atentos às necessidades espirituais e educacionais das nossas crianças?

Infelizmente, em muitas congregações, os trabalhos com as crianças costumam ficar dentro dos limites da superficialidade. Como a agitação delas incomoda a condução do culto, o corpo de liderança eclesiástica prefere em diversas vezes entretê-las numa salinha à parte enquanto os pais permanecem no auditório da casa ouvindo a pregação dos pastores até a reunião terminar. A prioridade acaba sendo mesmo os adultos já que estes são os principais "clientes" dos templos modernos. Deste modo, a atenção dada nas classes infantis de escola bíblica é quase sempre mínima e insignificante de modo que há pastores esquecidos daquela conhecida orientação do Livro de Provérbios onde o texto nos diz:

"Ensina a criança no caminho em que deve andar, e, ainda quando for velho, não se desviará dele." (Pv 22:6)

Num país com tantos meninos e meninas carentes da atenção familiar, muitos deles soltos pelas ruas experimentando até a droga do crack, as igrejas estão negligenciando com o evangelismo. Temos jogado fora a oportunidade de construirmos um país diferente amanhã e influenciarmos na formação dos futuros adultos. Por que não oferecermos nas comunidades carentes um trabalho de educação complementar gratuito capaz de proporcionar atividades físicas e esportivas, aulas de reforço escolar, um estudo bíblico diário esclarecedor e momentos de lazer saudável para todos independentemente da religião dos pais? Se o Estado e a família têm falhado com os seus papeis, a Igreja não só pode como deve preencher este vácuo.

No versículo 17, quando Jesus fala de recebermos o Reino "como uma criança", afim de entrarmos nele, nosso Senhor fez dos pequeninos mais do que um modelo para os verdadeiros crentes. Se na parábola do fariseu e do publicano, este reconhecia não possuir nada para barganhar com Deus, o mesmo podemos constatar em relação à utilidade das crianças de colo, seres ainda incapazes de trabalhar e que dependem totalmente da nossa gratuidade.

Compreende-se que o Reino nunca vai ser de um grupo seleto de santos que aparentam ser fieis no cumprimento rigoroso dos preceitos bíblicos a ponto de se afastarem do convívio social só porque não podem se "contaminar com as coisas do mundo". Quem quer se converter realmente precisa renunciar a esse status de separado e de superior por ser um sujeito praticante de regras morais ou frequentador assíduo de cultos religiosos.

Na parábola do fariseu e do publicano, Jesus havia falado da necessidade do homem se humilhar ou rebaixar a si mesmo (verso 14). E, neste sentido, a metáfora de recebermos o Reino como uma criança vai nos levar à ideia de um esvaziamento de nós mesmos até que sejamos essencialmente humanos. Devemos, assim, procurar nos despir de todo orgulho, dos interesses egoístas, do apego às riquezas, das preocupações inúteis com o amanhã, da reputação construída perante terceiros, da vaidade dos diplomas e até dos poderes relativos a um ministério religioso no meio da congregação. Pois, lamentavelmente, tudo isso são coisas que nos privam de experimentar a felicidade do Reino porque sufocam aquela criança ainda existente no nosso interior.

Que possamos reencontrar essa criança que um dia se perdeu dentro da gente e voltarmos a brincar novamente nos playgrouds da vida! Só assim é que estaremos indo a Cristo e permitindo que outras pessoas aproxime-se também. Somente nos soltando vamos reencontrar o prazer na alegria do pequenino compartilhando todos da mesma celebração festiva que é a experiência maravilhosa do Reino.


OBS: A ilustração acima refere-se ao quadro Jesus abençoando as criancinhas do artista alemão Bernhard Plockhorst (1825-1907). Foi extraída do acervo virtual da Wikipédia em http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Jesus_Blessing_the_Children.jpg

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Bolsonaro deveria perder o seu mandato!



O deputado do PP fluminense, Sr. Jair Bolsonaro, tem extrapolado nas suas condutas ofensivas e intolerantes. A agressão que o parlamentar praticou nesta última visita da Comissão Nacional da Verdade (CNV) ao antigo DOI-Codi do Rio de Janeiro foi mais uma de suas extrapolações.

A meu ver, o direito de opinião de um deputado, senador ou vereador não lhe dá o direito de sair batendo e empurrando as pessoas. Bolsonaro tem todo o direito de querer defender o golpe militar de 1964, afirmar que o Brasil não passou por uma ditadura e ser contrário à transformação do quartel da Polícia do Exército num centro de memória. Mas, no momento em que ele começa a usar de agressões, suas atitudes passam a cercear as outras pessoas.

Particularmente, não sou contra à presença do deputado no batalhão da PE mesmo ele não sendo integrante da CNV pois, na qualidade de um parlamentar, poderia fiscalizar os trabalhos. Mas, se uma pessoa ingressa num ambiente para provocar tumultos, e sua intenção parece ter sido esta, precisa então ser afastado dali. Mesmo em se tratando de um deputado federal eleito com o voto popular.

Depois do que se passou, penso que a Câmara deveria tomar logo uma posição contra este sujeito truculento e dar a ele a punição devida por todos os atos indecorosos já praticados, conforme a bancada do PSOL pretende fazer ingressando com uma representação. Além de perder o mandato como deputado, Bolsonaro deveria ter seus direitos políticos suspensos tornando-se inelegível por algum tempo.


OBS: Foto acima oriunda da Agência Brasil de Notícias.

O engano de nos considerarmos suficientemente justos


"Propôs também esta parábola a alguns que confiavam em si mesmos, por se considerarem justos, e desprezavam os outros: Dois homens subiram ao templo com o propósito de orar: um, fariseu, e o outro, publicano. O fariseu, posto em pé, orava de si para si mesmo, desta forma: Ó Deus, graças te dou porque não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros, nem ainda como este publicano; jejuo duas vezes por semana e dou o dízimo de tudo quanto ganho. O publicano, estando em pé, longe, não ousava nem ainda levantar os olhos, mas batia no peito, dizendo: Ó Deus, sê propício a mim, pecador! Digo-vos que este desceu justificado para sua casa, e não aquele; porque todo o que se exalta será humilhado; mas o que se humilha será exaltado." (Evangelho de Lucas, capítulo 18, versículos de 9 a 14; versão e tradução ARA)

Não dá para ler esta incrível parábola, conhecida como a do fariseu e do publicano, sem questionarmos a nossa realidade religiosa atual. Principalmente praticando uma auto-análise da espiritualidade que cultivamos diante do Deus que nos sonda interiormente e nos conhece bem.

O fariseu e o publicano eram dois tipos sociais da época de Jesus. O primeiro formava um rigoroso partido religioso entre os judeus com normas de conduta capazes de distingui-los dentro da sociedade israelita em relação aos demais homens. Já o publicano compunha uma categoria profissional de coletores de tributos estatais, o que era um trabalho tido como indigno. Fosse porque muitos deles roubassem ou pelo simples fato de arrecadarem o imposto para o dominador estrangeiro. No contexto literário dos evangelhos, como temos estudado sequencialmente neste blogue entre uma e outra postagem diferente, o moralismo dos fariseus foi duramente criticado pelo Mestre a ponto de conduzi-los a uma condição contraditoriamente de impenitência, apesar de religiosos.

Esta não é a primeira vez que estou escrevendo na internet sobre essa metáfora. Para evitar repetir informações históricas e teológicas em demasia, sugiro aos interessados que leiam depois o artigo "Ó Deus, tem misericórdia de mim, pecador!", de 31/05/2010, e consultem outros textos pertinentes a este estudo em passagens anteriores do 3º Evangelho pois pretendo ir direto ao que hoje estou sentindo. Desejo compartilhar algo da própria experiência.

Durante a minha caminhada espiritual, posso dizer que já me senti um pouco de cada um desses dois personagens que subiram ao Templo afim de orar. A religião proporciona-me muitos dias de fariseu enquanto que as minhas quedas oportunizam os momentos de publicano arrependido. Não que o pecado em si seja bom, mas sim porque ele me esvazia do equivocado sentimento de auto-justificação. Faz com que eu me veja novamente numa estaca zero e recupere a consciência da aniquilação dos méritos supostamente acumulados, indo em busca de uma nova conversão (ou da retomada do contínuo processo de arrependimento/mudança).

Nessas raras horas de auto-humilhação sincera, sinto que o diálogo com Deus alcança uma excelente fluidez, muito melhor do que quando prossigo ajustado ao padrão medíocre de santidade que minha mente ainda bem religiosa tenta estabelecer. E digo ser algo medíocre porque perante perante o Altíssimo creio que nada do que fazemos torne-se suficiente para sermos meritoriamente aceitos/amados. Só que, quando viramos crentes espirituais, melhorando um pouquinho a nossa conduta em relação ao que éramos antes (e quanto aos demais desinteressados pela vida devocional ou fora dos nossos padrões), corremos o sério risco de entrarmos num engano bem pior: o de nos considerarmos justos, santos, moralmente superiores, quase perfeitos, gente de melhor qualidade, etc.

Embora o dízimo tenha sido uma atitude de fidelidade bíblica, acho interessante constatarmos que o jejum era um ato de auto-humilhação e de reconhecimento dos erros. Nas Escrituras Sagradas, quando a nação israelita arrependia-se dos pecados ouvindo a voz dos seus profetas, o povo jejuava. Durante a celebração anual do Yom Kippur ("dia do perdão"), era uma observância obrigatória para os judeus, segundo a Lei de Moisés. E, no livro de Jonas, tal foi a atitude dos ninivitas quando souberam que Deus pretendia destruir a cidade deles (Jn 3:5). Só que, na época de Jesus, havia religiosos fazendo aquilo repetidas vezes e despidos interiormente da essência do ato. Quando João tinhas lhes oferecido o batismo de arrependimento nas águas do Jordão, os fariseus recusaram:

"mas os fariseus e os intérpretes da Lei rejeitaram, quanto a si mesmos, o desígnio de Deus, não tendo sido batizados por ele." (Lc 7:30)

Não podemos cometer o erro de pensar que a parábola restringiu-se aos fariseus somente. Seria um engano e soaria até hipócrita fazermos dela uma crítica anti-judaica. Numa leitura contextual, observamos que, desde o verso 22 do capítulo 17 de Lucas, Jesus estava conversando particularmente com os seus seguidores após os fariseus terem-no consultado acerca da vinda do Reino de Deus (17:21). Assim, apesar do que diz o versículo nono do capítulo 18, entendo que o Senhor estivesse tratando com as pessoas de seu grupo de seguidores que formariam a futura Igreja. O Mestre parecia prever que, após sua morte, os discípulos poderiam cometer erros semelhantes aos do fariseus, coisa que ele tanto combatia. E, assim, fico me perguntando se, de fato, não foi isso o que realmente aconteceu na história eclesiástica e ainda se repete no nosso próprio comportamento?

Precisamos agir sempre como este publicano da parábola, quer tenhamos cometido algum tropeço recente ou não. Mesmo aqueles que nunca praticaram aqueles erros mais reprovados no meio religioso, devem passar pelo caminho da auto-humilhação cientes de que não se tornarão melhores do que ninguém por nada que fizerem ou deixarem de fazer. E, dessa maneira, creio que estaremos realmente buscando uma aproximação com o nosso Criador.

Que Deus tenha misericórdia de nós todos! Tenha misericórdia de mim porque sou pecador. Porque sou capaz de errar nas mesmas coisas e, pior ainda, anestesiar-me como um religioso e procurar refúgio nas aparências. Sei que mereço a condenação e não a aprovação, mas é por sua graça que vivo. Permita, ó Senhor, que eu retome o processo de conversão como no instante quando recebi a Jesus, ajudando-me a prosseguir conscientemente da minha condição sem precisar novamente cair para acordar.

Um ótimo dia para todos!


OBS: A ilustração acima refere-se ao quadro O fariseu e o publicano do artista francês James Tissot (1836-1902). Teria sido pintado entre 1886 e 1894 e se encontra atualmente no Museu do Brooklyn, na cidade de Nova York. Extraí do acervo virtual da Wikipédia em http://fr.wikipedia.org/wiki/Parabole_du_pharisien_et_du_publicain

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

SOS Baía de Sepetiba



Graças às autoridades brasileiras, umas das mais importantes baías do litoral do Rio de Janeiro e do Brasil está morrendo. Não me refiro à Guanabara pois esta até que, nos últimos anos, tem deixado o CTI para ficar em observação na enfermaria do meio ambiente. Refiro-me à baía de Sepetiba, desconhecida por muitos na geografia fluminense e flagrantemente ignorada dentro da Cidade Maravilhosa.

Para quem não sabe, o Rio, sede da final da Copa de 2014 e dos jogos olímpicos de 2016, é banhado por duas grandes baías. As águas da Guanabara, por estarem nos mais diversos cartões postais da cidade, vista do centro urbano, do Pão de Açúcar, do Corcovado e de inúmeros pontos turísticos, recebe muito mais atenção. Apesar de ainda estar bem poluída e se recuperando do último grande acidente da PETROBRÁS (2000), em que cerca de 1,3 milhão de óleo vazaram causando danos aos manguezais e aos pescadores, pelo menos ali os impactos costumam repercutir mais nos noticiários.

Já a baía de Sepetiba banha a esquecida Zona Oeste da cidade, o que inclui as praias nas localidades de Sepetiba e de Guaratiba, próximas a Santa Cruz que é um das áreas mais pobres do Rio. Pode-se dizer que o esgoto de Campo Grande, outro distrito também da Zona Oeste com mais de 1 milhão de habitantes, nem ao menos recebe uma captação adequada infectando rios, córregos e valões da região para, finalmente, ser descartado sem tratamento na tal baía. Quando o transporte dos dejetos e o seu despejo não são improvisados pelos moradores, a própria Cedae (Companhia Estadual de Águas e Esgotos) utiliza-se indevidamente das galerias de águas pluviais tendo a pachorra de cobrar dos consumidores a tarifa pelo serviço de esgotamento sanitário. Lá na Praia da Brisa, o mar já virou verdadeiro um depósito de lama e de esgoto evidenciando um preocupante processo de assoreamento de mais de um quilômetro de extensão.

Na edição n.º 530 da revista Tribuna do Advogado, periódico mensal da OAB/RJ, a matéria "Descaso validado pelo STJ" noticiou que o Judiciário brasileiro vergonhosamente está consentindo com esse inadmissível crime ecológico tipificado pelo artigo 54 da Lei n.º 9.605/95. A Lei Federal n.º 11.445/2007, que proíbe a cobrança da tarifa de esgoto, caso todas as etapas não sejam realizadas, simplesmente tem sido rasgada pelos nossos magistrados nas suas decisões. É o que se lê na explicação do presidente da Subseção da Ordem em Campo Grande, Dr. Mauro Pereira, conforme a reportagem de Renata Loback:

"Pereira conta que, anteriormente, os acordos eram realizados em todas as ações de Campo Grande, com a devida suspensão da cobrança. Até que houve um boom de mais de 60 mil processos e a situação mudou. 'Parece que, para evitar a sobrecarga do Judiciário e a quebra da empresa, os juízes passaram a julgar como improcedentes os processos contra a Cedae', afirma. O primeiro foi o juiz titular do XVIII Juizado Especial Cível, João Luiz Oliveira. Além de se basear no mesmo decreto adotado pelo STJ, o magistrado citou em suas decisões um suposto convênio entre a Cedae e o município do Rio de Janeiro. Por este convênio, segundo Oliveira, estaria prevista a utilização das galerias pluviais para dupla finalidade, ou seja, receber tanto as águas das chuvas como o esgoto produzido pelos usuários dos serviços. Para ele, isso caracterizaria o cumprimento de uma das etapas do processo de esgotamento: o transporte. De acordo com o presidente da subseção, se comprovada a existência do convênio - ainda hoje não declarada pela Cedae -, tal permissão seria ilegal, pois violaria o art. 487 da Lei Orgânica Municipal, que veda o uso das galerias para fins de esgoto." (pág. 38)

Lamentável como que a Cedae, prefeitos, governadores e até juízes parecem brincar com uma coisa tão séria como o nosso meio ambiente. No mês de junho, enquanto milhões de brasileiros foram às ruas de todo o país protestarem contra a corrupção, o Superior Tribunal de Justiça ainda foi capaz de considerar legal a cobrança do esgoto mesmo nos locais onde a concessionária não tenha a sua própria rede de coleta e os detritos lançados in natura nas galerias de águas pluviais.

Como se diz a grosso modo, o Judiciário é quem tem a palavra final diante das controvérsias de modo que posições como essas noticiadas pela OAB são capazes de gerar um grande descrédito institucional na sociedade brasileira agravando ainda mais a nossa crise de representação. Assim, enquanto os políticos e magistrados brasileiros mantiverem uma mentalidade terceiro-mundista que, data venia, só privilegia os interesses dos empresários e dos governantes em detrimento da maioria da população, corremos o risco de continuar assistindo esta agonizante degradação do nosso patrimônio natural pelas décadas seguintes. Trata-se do futuro das próximas gerações que se encontra ameaçado!

Além de parte da Zona Oeste carioca, a baía de Sepetiba banha todo o litoral do município de Itaguaí e um considerável trecho da costa de Mangaratiba. Aqui em Muriqui, localidade onde resido, a praia só não chega a ser tão poluída como na região de Guaratiba porque estamos praticamente de frente para a sua saída pro mar aberto, a qual fica entre os paraísos ecológicos da Restinga de Marambaia e da Ilha Grande. Vale ressaltar que todos os anos ainda entram nessas águas cetáceos monitorados pela ONG Instituto Boto Cinza, podendo os animais serem ainda observados nas proximidades da belíssima Ilha de Jaguanum em determinadas épocas do ano. Deste modo, se pretendemos preservar esse patrimônio ambiental para a posteridade, a hora da mudança é agora e a sociedade precisa colocar em pauta suas reivindicações quanto ao saneamento básico.


OBS: Imagem acima extraída do site da Marinha do Brasil.

domingo, 22 de setembro de 2013

"Quando vier o Filho do Homem, achará, porventura, fé na terra?"


"Disse-lhes Jesus uma parábola sobre o dever de orar sempre e nunca esmorecer: Havia em certa cidade um juiz que não temia a Deus, nem respeitava homem algum. Havia também, naquela mesma cidade, uma viúva que vinha ter com ele, dizendo: Julga a minha causa contra o meu adversário. Ele, por um tempo, não a quis atender; mas, depois, disse consigo: Bem que eu não temo a Deus, nem respeito a homem algum; todavia, como esta viúva me importuna, julgarei a sua causa, para não suceder que, por fim, venha a molestar-me [ou esbofetear-me]. Então, disse o Senhor: Considerai no que diz este juiz iníquo. Não fará Deus justiça aos seus escolhidos, que a ele clamam dia e noite, embora pareça demorado em defendê-los? Digo-vos que, depressa, lhes fará justiça. Contudo, quando vier o Filho do Homem, achará, porventura, fé na terra?" (Evangelho de Lucas, capítulo 18, versículos de 1 a 8; versão e tradução ARA)

A princípio, a interpretação da parábola do juiz iníquo e da viúva importuna não guarda muita dificuldade de compreensão textual. Pelo menos até à indagação do versículo oitavo, o qual nos conduz a uma reflexão em que precisaremos buscar dentro de nós mesmos a resposta.

Pode-se afirmar que este ensino do Senhor seria quase um paralelo da metáfora do amigo importuno (Lc 11:5-8), conforme já estudada no artigo Um Pai que só tem o bem para nos dar. Em resumo, trata-se das reivindicações de uma mulher que, tendo na Lei de Deus o direito de amparo e de proteção, por ser a viuvez uma reconhecida situação de vulnerabilidade social, consegue persistentemente que o juiz de sua cidade concorde em julgar a demanda que tinha. Por ser iníquo, o homem preferia omitir-se no que dizia respeito às questões das pessoas desfavorecidas. Sua conduta era uma maneira de deixar fazer justiça, não muito diferente da lentidão absurda de vários tribunais brasileiros, já que nem sempre os magistrados podem dar soluções flagrantemente contrárias às normas legais e/ou à jurisprudência vinculante. Logo, preferem agir demoradamente.

Eu diria que a Justiça do Trabalho no Brasil é um clássico exemplo dessa omissão vergonhosa. O Estado brasileiro possui boas normas protetivas nesta área do Direito, segundo consta na Constituição e na CLT que, se fossem aplicadas com rapidez e rigor, obrigariam os patrões a respeitarem mais os seus empregados. Só que, na prática, os processos trabalhistas demoram anos. Alguns mais do que uma década inteira até o reclamante receber o último centavo devido em fase de execução de sentença. Então, o que se vê na prática, são acordos feitos nas audiências, os quais acabam beneficiando mais os empregadores. Isto porque o trabalhador, estando muitas das vezes desempregado (e o advogado querendo receber seus honorários percentuais sobre a indenização paga), vai preferir ganhar menos e resolver tudo de uma vez, do que persistir na briga até o final. Ainda mais com tantas empresas que quebram e entram em falência fraudulentamente.

Apesar da parábola denunciar este descaso no Judiciário, que já ocorria antes mesmo dos tempos de Jesus, o foco principal do Mestre estaria no nosso relacionamento com Deus e na fé. Se o juiz, que era iníquo, cedeu às reincidentes importunações da viúva, por que o Pai Celestial iria deixar de atender as petições de seus filhos sendo Ele justo e bondoso?

Frequentemente, os homens perdem a noção de quem é o nosso Criador bendito. As Escrituras Sagradas dizem: "Provai e vede que o Senhor é bom" (Sl 34:8). Tal passagem, que reflete a experiência pessoal do salmista, foi aludida na primeira epístola do apóstolo Pedro (1Pe 2:3). Mas, infelizmente, muitos de nós ainda temos uma visão deturpada acerca do caráter do Santo. Pessoas deixa de se lançar nos seus braços acolhedores em oração, desfrutando da ternura do amor do Pai, para baterem na porta de sujeitos iníquos. Acreditam mais nos favores de políticos oportunistas e mentirosos, por exemplo, do que na bondade eterna do Pai. Ou, então, procuram os líderes religiosos enganadores e sacerdotes dos falsos deuses que exigem coisas em troca para que as bênçãos sejam supostamente concedidas.

É possível alguém crer na existência de Deus e ainda assim desconhecer a extensão de seu amor inesgotável? Ao que parece, esta tem sido a incompleta experiência de muitos de nós. Não porque o Pai Celestial nos trate mal, mas, sim, pela falta de intimidade do povo no seu relacionamento espiritual.

A pergunta do Evangelho de que, se na vinda do Filho do Homem, haverá fé na terra, talvez refletiria a situação da Igreja na época do autor sagrado várias décadas depois da ascensão de Jesus aos céus. Estudamos, na postagem anterior, alguns aspectos sobre o tema da volta de nosso Senhor, algo que teria sido uma expectativa muito mais intensa para os primeiros cristãos dos séculos de I a IV, os quais, sendo duramente perseguidos por Roma, viam na Parousia um livramento imediato de suas aflições. Só que a mudança dos tempos é assunto que diz respeito aos planos soberanos de Deus e, não raramente, a nossa esperança acaba reduzindo porque ansiamos por ver os resultados cumprindo-se no nosso próprio cronograma.

Não duvido de que essas teriam sido umas das preocupações dos pais da Igreja quando nos legaram as versões gregas das boas novas que, originalmente, creio terem sido anunciadas apenas de maneira verbal nas velhas comunidades do Império Romano. E, assim sendo, como manter viva a esperança daqueles crentes antigos após a Igreja de Cristo sofrer massacres cruéis dos reis e autoridades da época, os quais prendiam famílias inteiras afim de serem comidas pelos leões no Coliseu?! Afinal, pessoas eram torturadas e mortas constantemente e, ainda assim, não desistiam da fé. Foram muito mais valentes do que os cristãos de hoje no Ocidente em seus confortáveis templos que gozam, inclusive, de isenção tributária do nosso governo democrático e da proteção estatal da crença religiosa.

Praticamente uns dois mil anos depois da morte de Jesus, muitos já nem têm mais esperança na construção de um novo tempo conforme pregado pelo Evangelho do Reino. Diante de tantas notícias trágicas, como esse recente ataque covarde a um shopping na capital do Quênia, ouço cristãos dizendo que o mundo não tem mais jeito. E aí usam até como desculpa para a omissão da Igreja a própria crença na segunda vinda de Cristo ao responderem que "só Jesus voltando as coisas vão melhorar", como se não precisássemos consolidar o anúncio das boas-novas. Como se o papel eclesiástico fosse meramente proselitista e não de alcance sócio-político...

Segundo os historiadores, Roma até que era bem tolerante com a diversidade de crenças. E, sendo assim, pergunto se os cristãos da época teriam sido perseguidos apenas pelo fato de pregarem uma nova religião? Por acaso os nossos primeiros irmãos não tinham uma proposta que fosse perturbadoramente revolucionária?!

Ora, fé é também atitude! É oração persistente e confiante, mas que se confirma também pelos nossos posicionamentos adequados diante dos desafios/escolhas da vida. Significa, dentre tantas outras coisas, dizermos não ao pecado, deixarmos os meios desonestos de ganhar dinheiro, contribuirmos pelo bem de nosso irmão, contrariarmos os interesses injustos/exploratórios dos poderosos denunciando as suas obras más, reconhecermos humildemente os erros por nós cometidos seguindo outra vez pelo caminho certo e acreditarmos numa mudança positiva do cenário mesmo contra as aparências.

A viúva da parábola, apesar do risco de sofrer um julgamento injusto, tendo em vista o mal caráter do juiz local, foi capaz de importuná-lo a fim de ver a causa julgada. Com muito maior fé, devemos nós clamarmos pelo Justo Juiz de toda a Terra - Deus. Precisamos confiar na fidelidade de suas promessas e a vida diária de oração jamais deixa de ser um excelente termômetro para nos auto-avaliarmos neste sentido, bem como começarmos a nos exercitar espiritualmente. Logo, se o desânimo está nos afetando, o que é humanamente compreensível, vamos então reacender o fogo das nossas lamparinas, sendo certo que, se olharmos bem, muitas coisas o Eterno tem feito pela vida da gente, nas mais pequenas coisas. Só que grande parte das pessoas nem percebe esse cuidado maravilhoso do Pai.

Tenhamos fé! Nosso Deus é justo e bondoso. Ele nos ama pra valer!


OBS: A imagem acima refere-se a uma ilustração do artista londrino John Everett Millais (1829-1896), feita, em 1863, para o livro em inglês Parábolas do Nosso Senhor. Foi extraída do acervo virtual da Wikipédia em http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:John_Everett_Millais_-_Parable_of_the_Unjust_Judge.jpg

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Um reino que vem sem aparência visível


"Interrogado pelos fariseus sobre quando viria o reino de Deus, Jesus lhes respondeu: Não vem o reino de Deus com visível aparência. Nem dirão: Ei-lo aqui! Ou: Lá está! Porque o reino de Deus está dentro de vós [ou entre vós/no meio de vós]" (Evangelho de Lucas, capítulo 17, versículos 20 e 21; versão e tradução ARA)

Esta é uma das partes do Evangelho que causa algumas divergências entre os tradutores da Bíblia sobre qual o sentido adequado da expressão grega entós. Se deve ser entendida como "dentro de vós" ou "entre vós", o que para mim não gera problemas porque prefiro optar por uma exegese ampla que aceite mais de uma significação ao mesmo tempo.

Deve-se considerar que a presença do Reino de Deus seria algo oculto/escondido, mas que aguarda uma plenificação futura. Foi o que o Mestre ensinou ao contar as parábolas do grão de mostarda (Lc 13:18-19) e do fermento (13:20-21), conforme vimos no artigo Um começo bem pequenininho. Trata-se, assim, de uma realidade que, em certo sentido, está aqui mas também virá.

Sem dúvida que o Reino de Deus não se confunde com nenhum governo humano ou país. Não é o Estado de Israel e nem o Vaticano. Tão pouco podemos fazê-lo se representar por alguma instituição religiosa. A Igreja de algum modo teria como tarefa torná-lo visível até certo ponto através das nossas condutas amorosas, dos trabalhos sociais, na vida em comunidade, pela integridade das ações praticadas, as obras de justiça, de restauração e de paz. Só que, ainda assim, as raízes desse Reino estariam plantadas em Deus sendo sua origem totalmente de natureza espiritual ainda que buscando assumir o comando/influência sobre o mundo físico por meio de nós pelas escolhas positivas que são tomadas.

Alguns questionam que a tradução "dentro de vós" esteja equivocada porque, nos versos 20 e 21, o Mestre não estaria se dirigindo aos seus seguidores e sim aos fariseus, os quais, no contexto literário do evangelista, seriam religiosos impenitentes. Porém, não se pode descartar o entendimento de que a realidade do Reino se ache ainda como uma chama encapsulada em muitas pessoas fechadas dentro delas mesmas. E, sendo assim, estamos falando de uma presença existente no coração de todos os homens.

Estar "entre vós", ou "no meio de vós", apontaria para a presença do Reino no movimento do Espírito Santo manifesto no ministério de Jesus. Algo que os fariseus não estavam compreendendo, ou querendo aceitar, visto que tinham acusado o Senhor de expulsar demônios por Belzebu quando um homem mudo ficou curado e ainda esperavam por um sinal (conf. Lc 11:14-23), como analisado no texto Afinal, estamos contra ou a favor do Reino?, escrito em 12/08.

Só que nenhum sinal seria dado senão o do profeta Jonas (Lc 12:39), o que torna a vinda do Reino de certa maneira inobservável. É o que podemos verificar pela leitura paralela e comparativa da sentença n.º 113 do Evangelho de Tomé:

"Seus discípulos disseram a ele: Quando virá o Reino? Disse Jesus: Ele não virá porque é esperado. Não é uma questão de dizer: Eis que está aqui! Ou: Eis que está ali! Na verdade, o Reino do Pai está espalhado pela terra e os homens não o vêem."

Sem dúvida que os ditos de Jesus encontrados em Lucas e em Tomé abrem portas para uma possível interpretação não escatológica sobre o Reino de Deus. Porém, o diálogo que se segue entre o Senhor e os seus seguidores (vv. 22-37) não exclui uma interpretação visando os últimos dias. Isto é, a desejada segunda vinda de Cristo. Um acontecimento crido como repentino e imprevisível pela Igreja primitiva, motivo pelo qual os discípulos (nós) precisariam manter uma vigilância permanente.

Não afirmaria que tal noção sobre a volta de Jesus seja equivocada, mas, sim, mal compreendida. Principalmente quando se busca interpretá-la de maneira totalmente literal e enquadrada nas doutrinas eclesiásticas apocalípticas. Pra mim, o retorno do Senhor representa a tão sonhada plenificação do Reino da qual nos aproximamos cada vez mais não podendo ser confundido com um messianismo barato e enganador. A este respeito, o Mestre bem teria prevenido os seus discípulos para não se deixarem seduzir indo atrás dos falsos líderes que surgiriam (v. 23), pois o Ungido não estaria nem aqui e nem ali. Aquilo que podemos chamar de segundo advento de Cristo (a parousia do Evangelho de Mateus)  será algo público e notório (v. 24). Uma realidade que se mostrará inconfundível marcando definitivamente o fim da era atual. Será como o raio que, embora não possamos localizar, ilumina o céu do nascente ao poente. Só que, antes de se manifestar em glória, o Filho do Homem ainda teria que padecer e ser rejeitado (v. 25), algo que se relaciona com a nossa luta revolucionária por um mundo de justiça conforme a pregação do Evangelho.

Ora, o Reino de Deus não é mágica! É algo que construímos com trabalho, persistência, amor, lágrimas, orações, atitudes de perdão, contrariando corajosamente fortes interesses e até mesmo sofrendo as perseguições. Vivendo numa época bem pior do que a nossa, homens foram presos, torturados e mortos pelo testemunho de Jesus. Seguindo os passos do Mestre, os discípulos não estiveram brincando de religião como se fossem criar mais uma seita no planeta. O movimento dos apóstolos mexeu profundamente com as estruturas econômicas, políticas e sociais do antigo Império Romano!

Apesar de toda essa fase de luta e de sofrimento da Igreja, a mudança nos tempos finais é certa. Jesus, então, faz uma prefiguração da vinda do Filho do Homem pelo término das eras de Noé e de Ló citados aqui como homens modelos no meio de gerações perversas:

"Assim como foi nos dias de Noé, será também nos dias do Filho do Homem: comiam, bebiam, casavam e davam-se em casamento, até ao dia em que Noé entrou na arca, e veio o dilúvio e destruiu a todos. O mesmo aconteceu nos dias de Ló: comiam, bebiam, compravam, vendiam, plantavam e edificavam; mas, no dia em que Ló saiu de Sodoma, choveu do céu fogo e enxofre e destruiu a todos. Assim será no dia em que o Filho do Homem se manifestar. Naquele dia, quem estiver no eirado e tiver os seus bens em casa não desça para tirá-los; e de igual modo quem estiver no campo não volte para trás. Lembrai-vos da mulher de Ló. Quem quiser preservar a sua vida perdê-la-á; e quem a perder de fato a salvará. Digo-vos que, naquela noite, dois estarão numa cama; um será tomado, e deixado o outro; duas mulheres estarão juntas moendo; uma será tomada, e deixada a outra. [Dois estarão no campo; um será tomado, e o outro, deixado.] Então lhes perguntaram: Onde será isso, Senhor? Respondeu-lhes: Onde estiver o corpo, aí se ajuntarão também os abutres." (17:26-37)

Todavia, a advertência não serve somente para o mundo! A referência à mulher de Ló (v. 32) que, segundo Gênesis 19:26, olhou para trás e virou uma estátua de sal, vem dizer aos ministros do Evangelho desses últimos dias sobre o dever de fixarmos a nossa visão no Reino de Deus e não nos bens deste mundo. E, pelo que se vê flagrantemente, há muitos pregadores por aí deixando de anunciar as boas novas e adotando o discurso da teologia da prosperidade. Deste modo, esses falsos pastores têm feito com que o coração das pessoas se apegue às posses materiais numa hora errada. Observem que, no verso 33, Jesus repete o ensino já estudado em Lc 9:24 sobre ganhar/perder a vida (ler o artigo O discípulo e a cruz). Seria uma formidável inversão de valores que caracterizará o fim dos tempos.

No versículo 37, Jesus responde aos discípulos com um provérbio popular de sua época. Se o mal odor causado pela putrefação de um cadáver atrai os urubus, também os que perderão a vida por tentarem ganhá-la (nos valores mundanos/materialistas) estarão trazendo juízo para si mesmos. Outrossim, podemos entender que o Mestre estivesse falado aí de sua morte como um sinal que, ao mesmo tempo, seria incompreensível. O Filho do Homem sofreria rejeição pelos sacerdotes do Templo e será ali, na fraqueza da cruz, que ocorrerá a sua revelação. É o que leciona o teólogo italiano Sandro Gallazzi:

"(...) o filho do homem se revelará plenamente no Jesus de Nazaré crucificado, no homem condenado à morte pelos chefes do templo e executado pelos chefes do império. Podemos exercitar a nossa capacidade interpretativa para explicar quem seriam as águias (ou os abutres, como em Jó 39,28-30?) que irão se reunir ao redor do cadáver (...) A liberdade de interpretar um provérbio é, sempre, muito grande e variada. Trata-se do 'sinal de Jonas' (Mt 12,39-41; 16,4). É a presença de um corpo que deveria estar morto, mas que vive. É a parousia, o instante em que a história e escatologia se encontram: 'imediatamente'..., 'naquele momento'. O que deveria ser sinal de morte, ponto final, irreversível, não passa de um momento de aflição que abre as portas à vinda gloriosa do filho do homem, com seu cortejo de anjos." (O Evangelho de Mateus - uma leitura a partir dos pequeninos. Comentário Bíblico Latinoamericano. São Paulo: Fonte Editorial, 2012, pág. 489)

Ter essa esperança escatológica não seria incompatível com nossas ações construtivas no presente. A crença na plenificação do Reino, no tempo certo de Deus, deve nos motivar e nutrir o desejo de promoção das mudanças sociais necessárias, ajudando pessoas pelas mais diversas maneiras no nosso caminhar. Trata-se de um ânimo para cumprirmos fielmente com a nossa parte sabendo que a vitória do Senhor é certa. Maranata!


OBS: A ilustração acima refere-se ao quadro Crucificação de Cristo do artista germânico Albrecht Altdorfer (1480-1538). Encontra-se no Gemãldegalerie, importante museu de arte de Berlim, Alemanha, e a imagem foi extraída do acervo virtual da Wikipédia em http://en.wikipedia.org/wiki/File:Albrecht_Altdorfer_016.jpg

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

"Não eram dez os que foram curados?"


"De caminho para Jerusalém, passava Jesus pelo meio de Samaria e da Galileia. Ao entrar numa aldeia, saíram-lhe ao encontro dez leprosos, que ficaram de longe e lhe gritaram, dizendo: Jesus, Mestre, compadece-te de nós! Ao vê-los, disse-lhes Jesus: Ide e mostrai-vos aos sacerdotes. Aconteceu que, indo eles, foram purificados. Um dos dez, vendo que fora curado, voltou, dando glória a Deus em alta voz, e prostrou-se com o rosto em terra aos pés de Jesus, agradecendo-lhe; e este era samaritano. Então, Jesus lhe perguntou: Não eram dez os que foram curados? Onde estão os nove? Não houve, porventura, quem voltasse para dar glória a Deus, senão este estrangeiro? E disse-lhe: Levanta-te e vai; a tua fé te salvou." (Evangelho de Lucas, capítulo 17, versículos de 11 a 17; versão e tradução ARA)

Praticamente a metade do 3º Evangelho é contada dentro do contexto literário da peregrinação de Jesus a Jerusalém (Lc 9:51-19:44), o que, sem dúvida, possui grande significado teológico para quem decide estudar Lucas. A reunião de várias parábolas/narrativas nesta caminhada vai nos proporcionar o sabor de lermos os últimos ensinamentos do Mestre numa progressiva ordem até à Cidade Sagrada onde nosso Senhor será morto e vai ressuscitar ao terceiro dia.

Não sabemos em detalhes qual foi a rota escolhida por Jesus que parece ter sido movida pela evangelização antecedida pelo envio dos setenta discípulos (10:1-12), sendo que a informação geográfica do versículo 11 do capítulo em estudo, "pelo meio de Samaria e da Galileia", torna-se relevante para melhor compreendermos o que vai se desenrolar nesta passagem bíblica comentada. Ou seja, entre os dez leprosos curados, havia samaritanos e galileus, sendo que estes eram considerados judeus do interior enquanto aqueles estrangeiros de quinta categoria dentro do território da nação israelita. Principalmente por causa da rivalidade histórica entre judeus e samaritanos caracterizada por um comportamento hostil de ambas as partes.

Entretanto, a lepra parece ter unido a todos. Quer fossem judeus ou não, qualquer um daqueles dez homens estava cerimonialmente impuros e impedidos de entrarem no Templo. Deveriam viver em quarentena, sempre fora das aldeias, dos povoados e das cidades. Somente com o exame feito pelo sacerdote, constatando a cessação da moléstia, é que poderiam ser novamente admitidos no convívio comunitário em Israel. E, neste sentido, a lei não seria tão diferente para os samaritanos, os quais seguiam a Torá no modo deles.

No ministério de Jesus pela Galileia, um dos primeiros milagres que o Mestre realizou foi a cura de um leproso (5:12-18), conforme estudado no artigo "Quero, fica limpo!". Ali o homem condicionou a sua restauração à vontade do Senhor que, tendo quebrado os preconceitos de sua época, tocou no corpo doente daquele enfermo sem temer o contágio. O resultado foi instantâneo, mas ainda assim Jesus ordenou que o ex-leproso cumprisse com as determinações da lei mosaica apresentando-se ao sacerdote e oferecendo o sacrifício prescrito em Levítico 14.

Desta vez, porém, bastaram apenas poucas palavras sem a necessidade de qualquer toque. O milagre parece não ter acontecido de imediato. Os dez leprosos precisariam ainda se apresentar ao sacerdote confiando no que Jesus lhes teria dito. Lá eles teriam a confirmação da cura, inclusive o samaritano consultando-se com um religioso judeu no Templo de Jerusalém.

Só que a história não termina aí! O evangelista fez questão de registrar que, entre os dez leprosos purificados, apenas um retornou glorificando a Deus e veio agradecer humildemente ao judeu Jesus. O escritor sagrado acrescenta ainda que o tal homem era um samaritano, o que dá uma outra dimensão a esta narrativa, pré-anunciando o caráter universalista das boas-novas do Reino em que todos, judeus ou não, são inclusos no povo de Deus.

Na atualidade, essa passagem do Evangelho deve ser compreendida mais no aspecto da gratidão, coisa que nem sempre sabemos cultivar. Um tempo depois de recebermos o livramento de qualquer situação problemática, a nossa mente é capaz de esquecer com rapidez o benefício. Diante de novas dificuldades, passamos a reclamar da vida e uns murmuram até contra o gracioso Deus. Não raramente, as pessoas que surgiram no nosso caminho, afim de nos darem as mãos quando mais precisávamos de apoio, acabam sendo descartadas/ignoradas.

No versículo 17, Jesus indaga onde estariam os outros nove leprosos purificados. O texto bíblico não explica o motivo da ausência deles. Não diz se preferiram  cuidar dos próprios interesses ou se foram orientados pelo sacerdote a não procurarem pelo Mestre novamente que, na certa, já deveria ser acusado de heresia pelos líderes religiosos do Templo. Isto porque os saduceus veriam nos ensinos do Senhor uma ameaça aos interesses clericais.

Lendo esse belo episódio na dimensão do discipulado, encontramos aí um complemento ilustrado do estudo anterior sobre a parábola da recompensa do servo (vv. 7-10). Neste caso, o servo seria representado pelo próprio Jesus que deixou de receber o agradecimento dos outros nove leprosos. Assim, para os ministros do Evangelho, executores da obra de Deus e construtores do Reino, não se deve aguardar uma retribuição justa das pessoas pelos benefícios que lhes são proporcionados. Faz parte da natureza humana agir com ingratidão e o nosso serviço ao próximo jamais poderá virar uma troca.

Creio que aí esteja um exemplo da multiforme aplicação dos ensinos dos evangelhos. Aprendemos com a leitura dessa passagem, dentre outras coisas, que: (i) precisamos ser pessoas agradecidas, esforçando-nos para reconhecer os benefícios que recebemos; (ii) jamais nutrirmos preconceitos de raça, cor, gênero, nacionalidade e até de credo religioso quanto à capacidade evolutiva do outro; e (iii) não esperarmos nada em troca pelas boas ações desempenhadas. Aliás, nem é bom ficarmos exigindo que o outro nos reconheça. Pois, se somos suficientemente maduros, devemos saber lidar com a ingratidão alheia e darmos o tempo que for preciso, inclusive a nossa vida inteira, para que a consciência de cada um se desperte no momento certo.


OBS: A ilustração acima refere-se a uma gravura do Codex Aureus Epternacensis, manuscrito do século XI (c. 1035-1040) que se e ncontra no Museu Nacional Germânico, em Nuremberg, Alemanha. Foi extraída do acervo virtual da Wikipédia em http://it.wikipedia.org/wiki/File:CodexAureus_Cleansing_of_the_ten_lepers.jpg

A recompensa do servo

"Qual de vós, tendo um servo ocupado na lavoura ou em guardar o gado, lhe dirá quando ele voltar do campo: Vem já e põe-te à mesa? E que, antes, não lhe diga: Prepara-me a ceia, cinge-te e serve-me, enquanto eu como e bebo; depois comerás tu e beberás? Porventura, terá de agradecer ao servo porque este fez o que lhe havia ordenado? Assim também vós, depois de haverdes feito quanto vos foi ordenado, dizei: Somos servos inúteis, porque fizemos apenas o que devíamos fazer." (Evangelho de Lucas, capítulo 17, versículos de 7 a 10; versão e tradução ARA)

Um dos mestres judeus contemporâneos de Jesus, o rabi Yochanã ben Zakai (c. de 30-90 d.C), teria dito certa vez que o fato do homem cumprir a Lei de Deus não lhe daria direito a reclamar um reconhecimento meritório pois seria o ser dever/função a observância dos mandamentos da Torá (mAb 2,8). E, a meu ver, o sentido da parábola que trata da recompensa do servo, tem muito a ver com essa ideia do tanaíta muito embora o nosso Senhor tenha proferido-a talvez para desenvolver melhor o tema do perdão (versos 5-6), como foi tratado no penúltimo estudo bíblico.

Seja como for, creio que a metáfora tenha ampla aplicação em nossas vidas. Compreendo que não devemos esperar de Deus que nos aceite por causa das obras feitas, pois o sentimento do Criador pelo homem é gratuito. O Pai Celestial aceita a cada um independentemente daquilo que fazemos ou deixamos de fazer. Seu coração se alegra com as boas ações, mas jamais o amor do Eterno estará condicionado a elas. Como na parábola do filho pródigo (Lc 15:11-32), o descendente mais novo não deixou de ser recebido novamente na casa paterna quando decidiu voltar arrependido.

Igualmente, não podemos esperar ser recompensados também pelo perdão dado a alguém que nos feriu. Jamais tal atitude deve ser vista como uma moeda de troca para alcançarmos bênçãos terrenas ou celestiais. O nosso status continua sendo sempre o de servo!

Para muitos essas ideias parecem injustas e a parábola afronta até os direitos trabalhistas de hoje garantidos pela nossa CLT bem como pelas constituições dos países democráticos. Afinal, depois de um dia desgastante de labor no campo, o servo só tem o direito de comer depois que prepara a ceia para o seu senhor e o serve. Somente quando o patrão termina a sua refeição é que o empregado para pra se alimentar. E isto sem receber nenhum agradecimento pelo cumprimento das pesadas tarefas...

É certo que o Mestre não estaria justificando a injusta exploração do trabalho humano em seus dias. Ele apenas fez daquela situação vil uma metáfora para que entendêssemos a prática do bem e do perdão como ações integrantes do nosso sentido existencial. Jamais para sermos especificamente recompensados. Aliás, a guarda dos mandamentos e a atitude de perdão foram prescritas na Lei de Deus para o nosso próprio bem.

Penso que aí esteja a grande diferença quando realizamos as boas obras debaixo da concepção da gratuidade da vida. Passamos a encarar o serviço como algo até prazeroso. Uma maneira de expressarmos o amor por Deus e pelas pessoas. Seria a oportunidade de compartilharmos inclusivamente aquilo que recebemos sem medida do nosso generoso Pai Celestial. E aí, se somos perdoados de maneira incrível, por que ainda haveremos de reter o perdão em relação ao nosso irmão?!

A ideia de nos considerarmos "servos inúteis" (verso 10) em nada tem a ver com o rebaixamento da auto-estima do cristão. Muito pelo contrário! Trata-se antes de por as coisas no seu devido lugar, não confundindo as boas obras e a liberação do perdão como instrumentos de barganhas para alcançarmos o amor imensurável do Pai.

Tal ensino de Jesus é inegavelmente importante para o discipulado de todas as eras e acho que isso pode ser levado também para o nosso relacionamento com o outro em casa, no trabalho e na comunidade. Quantas vezes não ficamos esperando por uma atitude de reconhecimento das pessoas quanto a um benefício que fizemos a elas? Pois, enquanto a caridade por nós praticada permanecer legalista e não se tornar graciosa, corre-se o risco de fazer da ajuda ao próximo uma troca perversa. E aí, por causa das expectativas de retribuição, invalidamos a boa ação a ponto da relação deixar de ser espiritualmente terapêutica para virar até doentia.

Meus amados, vejo que esta questão certamente não está dissociada do episódio seguinte sobre a cura dos dez leprosos (Lc 17:11-19) em que somente um deles voltou para agradecer (v. 15). É o que pretendo ainda compartilhar aqui na postagem seguinte em que o milagre pode ser lido também dentro da ótica do discípulo como operador das boas obras. Aguardem o próximo estudo! Para finalizar, deixo aqui as palavras de oração ditas em certa ocasião pelo virtuoso Tomás de Aquino (1225-1274), um dos maiores teólogos medievais, as quais refletem um bom entendimento da parábola em comento:

"Eu te agradeço, ó Senhor, Todo-Poderoso Pai, Eterno Deus, que considerou por bem, não por meus méritos, mas pela condescendência de sua bondade, satisfazer-me como pecador, este seu servo inútil."

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Como um grão de mostarda...


"Então, disseram os apóstolos ao Senhor: Aumenta-nos a fé. Respondeu-lhes o Senhor: Se tiverdes fé como um grão de mostarda, direis a esta amoreira: Arranca-te e transplanta-te no mar; e ela vos obedecerá." (Evangelho de Lucas, capítulo 17, versículos de 5 a 6; versão e tradução ARA)


Conforme chegamos a ver nestes estudos sequenciais sobre o 3º Evangelho, quando abordamos a parábola do grão de mostarda (Lc 13:18-19), devemos ter sempre em mente aquilo que a semente desta comentada planta simbolizou no contexto histórico do nosso Mestre. É o que consta na literatura rabínica conforme a lição de Geza Vermes (1924-2013) em seu livro O autêntico evangelho de Jesus, sendo meu o destaque:

"(...) é preciso que tenhamos em mente que a semente de mostarda simboliza, no dizer judaico, o menor volume ou quantidade. Quando os rabinos falam de uma minúscula gota de sangue, comparam-na com o tamanho do grão de mostarda (yBer 8d; bBer 31b). Em contraste, o arbusto em que a semente se desdobra é o maior da espécie: é grandiosamente chamado de árvore (...)" - Págs 150 e 151

No estudo bíblico anterior, Jesus havia ensinado os seus discípulos que eles deveriam perdoar sempre (Lc 17:3-4) e, ao que parece, o significado da semente de mostarda é então aplicado de maneira correspondente. Suponho eu que, devido ao uso da conjunção em destaque, a qual inicia o versículo 5, o ensino guarde sua relação com o tema do perdão como nos mostram os comentários correspondentes da Bíblia de Estudo de Genebra, muito embora, no 1º Evangelho, um dito bem parecido se aplique a uma outra situação (Mt 17:20):

"Aparentemente os apóstolos pensavam que grande fé seria necessária para perdoarem assim. Jesus aponta para aquilo que mesmo uma pequena fé pode realizar (...)"

Concordo com esta sugestão de explicação porque induz a um raciocínio contextualizado. A comparação com a mostarda pode ter servido para Jesus falar da operação da fé em pelo menos duas diferentes situações. Só que, nos dois versos anteriores à passagem bíblica citada, o Mestre estava ministrando sobre o perdão, continuando uma conversa que seria particular com os discípulos (versículo 1). E, sendo assim, faço a seguinte indagação:

Em que sentido pode a fé nos ajudar a liberar perdão já que seria preciso haver pelo menos uma dosagem bem mínima dela "como um grão de mostarda"?

O que posso considerar talvez seja a orientação para continuarmos a apostar numa transformação de caráter das pessoas por mais que elas cometam reincidentes falhas. Embora esteja aí envolvido o fator livre arbítrio, em que cada ser humano muda apenas se assim desejar, nunca podemos ignorar a ação convincente do Espírito de Deus sobre os corações das pessoas. Inclusive através do nosso comportamento amoroso quando nos dispomos a ser verdadeiramente agentes da salvação/recuperação do próximo.

É um teste de fé! Mas eu diria que uma das maiores razões que levam as pessoas a orarem seriam justamente os pedidos por seus familiares. Quantas mães não passaram anos de suas vidas clamando pela conversão de um filho que se perdia no caminho das drogas e da criminalidade?! Ainda assim, muitas dessas mulheres valentes jamais desistiram de lutar e continuaram intercedendo, levando uma foto ou uma peça de roupa do descendente para as reuniões de sua igreja.

Eu diria ainda que, para muitos casos, houve mães que nunca chegaram a ver com os olhos naturais a conversão do filho. Algumas foram para o túmulo apenas com a esperança, confiando no cumprimento das promessas divinas no tempo certo. Outras, porém, viram o fruto de seus ventres partindo prematuramente sem saberem em que momento possa ter ocorrido a tão aguardada mudança interior, mas permaneceram crendo na misericórdia e na fidelidade do Eterno em relação às suas famílias.

Ora, Jesus precisou também ter fé quanto aos discípulos que instruiu. Até à sua morte, eles cometiam várias imaturidades. Após a prisão do Senhor, Pedro ainda o negou por três vezes (Lc 22:54-62), mas o Mestre já contava com aquela atitude do homem que escolhera no mar da Galileia para ser um pecador de almas, pelo que teria até liberado antecipadamente o perdão (Lc 22:31-34).

Igualmente, assim também é a nossa caminhada. Seja no discipulado ou no trato com os nossos familiares mais íntimos. Não podemos desistir das pessoas de uma maneira tão fácil. Mesmo que venhamos a adotar algumas medidas disciplinares, ou de proteção física-emocional a ponto de restringirmos o contato, os alvos dos nossos posicionamentos não poderão deixar de ser a restauração e a reconciliação. E, se apesar de todos os esforços, o outro não reconhece a nossa compaixão, que a fé nos sirva de combustível para prosseguirmos cumprindo com o nosso papel.


OBS: Foto de origem desconhecida encontrada em vários sites na internet. Extraí a imagem diretamente de http://mfcmamonas.no.comunidades.net/index.php?pagina=1084767450_03