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quinta-feira, 24 de maio de 2012

As leis reparatórias dos sumerianos, o talião e o enigma do perdão

Muitos séculos antes de Moisés, o direito dos povos começou a ser escrito pelos sumérios em estelas e tábuas de argila na antiga Mesopotâmia, nome este dado pelos gregos ao atual Iraque significando “terra entre rios”.

Situada entre os rios Tigre e o Eufrates, a Mesopotâmia pode ser considerada o berço da nossa civilização ocidental. Formada por inúmeras cidades-reino, eis que vários povos de origens diferentes fixaram-se ali. Nas férteis planícies do sul, estavam os sumérios que alguns místicos acreditam terem-se originado da lendária Atlântida. No centro, uma região de características mais árida, encontrávamos os acadianos. E, ao norte, os assírios que habitavam as montanhas. A economia era agropastoril e havia um considerável comércio fluvial com embarcações subindo e descendo.

Diz a Bíblia que o patriarca Abraão teria vindo de Ur dos caldeus, povo este que só ocupou tal cidade por volta do século IX a.C. Antes disto, porém, Ur chegou a ser um grandioso reino em sua terceira dinastia sob o governo do monarca Ur-Nammu, cerca de 2111 a 2094 a.C., tendo estendido os domínios territoriais de seu país sobre Eridu, Uruk, Nipur, Larsa, Késh e outras cidades menores da Mesopotâmia. Ao seu filho Shulgi (c. 2050 a.C) é atribuída a autoria do código de leis mais antigo até hoje encontrado pelos pesquisadores, tendo sido traduzido por Samuel Noah Kramer (1897-1990) na década de 50 da nossa era.

Eis aí algumas disposições do Código de Ur-Nammu:

1. Se um homem matar outro homem deverá ser morto.
2. Se um homem for culpado de roubo deverá ser morto.
3. Se um homem for culpado de seqüestro deverá ser preso e condenado a pagar 15 shekels de prata.
4. Se um escravo se casar com uma escrava, e esta cativa for posta em liberdade, então nenhum dos dois poderá deixar o cativeiro.
5. Se um escravo se casar com um indivíduo livre, deverá entregar o primeiro filho da união para o seu dono.
6. Se um homem deflorar a esposa virgem de outro homem ele deverá ser morto.
7. Se uma mulher casada dormir com outro homem ela deverá ser espancada até a morte. Mas o homem será posto em liberdade.
8. Se um homem violentar a escrava virgem de outro homem deverá pagar 5 shekels de prata.
9. Se um homem se divorcia da primeira esposa deverá pagar para ela uma mina de prata.
10. Se um homem se divorcia de uma mulher que já tenha sido casada deverá pagar a ela meia mina de prata.
11. Se um homem tiver intercurso sexual com uma viúva sem com ela ter redigido contrato, então não precisará pagar nada.
12. Se um homem for acusado de feitiçaria, mas contra ele não houver provas então esse homem deverá passar pelo “Julgamento Divino”. Se ele for inocente, deverá receber 3 shekels de prata daquele que o acusou.
13. Se uma mulher for acusada de infidelidade deverá passar pelo “Julgamento divino”. Se for inocente, seu acusador deverá lhe pagar a terça parte de uma mina de prata.
14. Se um homem ficar noiva de uma mulher, mas esta for dada a outro homem, então o antigo noivo deverá receber três vezes o valor pago pela moça.
15. Se um homem devolver o escravo fugido a outro homem deverá receber 2 shekels de prata.
16. Se um homem furar o olho de outro homem deverá pagar meia mina de prata.
17. Se um homem amputar o pé de outro homem deverá pagar 10 shekels de prata.
(http://historiadodireitounesp.blogspot.com.br/2010/04/ur-nammu.html)

Com a queda de Ur, através de uma guerra perdida para o Elão (região do sudeste da Pérsia), um novo reino sumeriano passou a ter influência sobre a Mesopotâmia entre os anos de 2033 a 1753 a.C. Até o início do governo de Hammurabi, em Babilônia. Localizada às margens do Diyala, afluente do Tigre, floresceu a cidade de Eshnunna, a qual destacou-se pela importância econômica e política adquirida. Suas normas jurídicas, descobertas em 1947, foram importantíssimas para darem solidez aos governos dos respectivos reis que, durante certo período, submeteram até a Assíria.

Em resumo, o Código de Eshnunna dispunha sobre casamentos, a proteção do mushkênum (classe intermediária entre os homens livres e escravos que suponho serem estrangeiros que trabalhassem para o palácio real), estabelecia valores pecuniários sobre os preços dos produtos, prestação de serviços, irregularidades, salários, juros, indenizações, etc. Excepcionalmente, em somente cinco hipóteses previstas, poderia ser aplicada pelo rei a pena de morte sobre determinados casos tipo o adultério feminino, a defloração por outro homem de uma jovem prometida em casamento e a queda de um muro mal conservado que tivesse causado a morte de um homem livre estando o seu proprietário já notificado pelos funcionários do governo. Porém, a maioria dos conflitos era mesmo resolvida pela reparação pecuniária imposta pelos juízes:

“Além disso: em uma causa (que implique a aplicação de uma compensação) de 1/3 de mina até uma mina de prata, os juízes julgarão a causa (…) Mas um processo de vida (pertence) ao rei.”

Tudo isso nos leva a crer pelas aparências de que as leis de Eshnunna foram mais avançadas do que as regras do talião adotadas amplamente no posterior Código de Hammurabi já no primeiro império babilônico. Porém, fico a pensar como deveria ser a vida numa sociedade onde quase tudo parecia ser resolvido através de somas em dinheiro?!

Em sua festejada obra Uma coleção de direito babilônico pré-hammurabiano. Leis do reino de Eshnunna, editora Vozes, o padre professor manauense Emanuel Bouzon (1933-2006) pesquisou sobre os valores financeiros praticados naquela cidade-reino onde um siclo correspondia a cerca de oito gramas ou um gur, conforme esta relação: 1 gur = 300 litros; 1 sut = 10 litros; 1 qa = 1 litro; 1 mina = 500 gramas.

Um sut de cevada era a diária de um trabalhador no campo e também o aluguel de um jumento, mas não pagava o uso de uma foice (1 sut e 5 qa). Se uma escrava fosse deflorada, o seu dono receberia 1/3 de uma mina de prata. Já uma briga entre dois homens livres (awilum) que resultasse em lesões, poderia custar ao agressor uma mina de prata por um olho, 2/3 de mina pelo corte de um dedo, 1/2 de mina por um dente ou orelha e 10 siclos do precioso metal só pela bofetada recebida. Se um cachorro brabo mordesse um awilum e lhe causasse a morte, o dono do animal pagaria 2/3 de uma mina de prata enquanto que, se a vítima fosse um escravo (wardum), pesavam somente 15 siclos.

Ora, considerando que 1 gur de cevada equivalia a um siclo de prata, eis que a vida de um escravo morto por um animal doméstico feroz importava nada menos do que 4.500 litros do cereal. Logo, se o dono do cão levasse dois bofetões na cara dados pelo proprietário do escravo, a dívida estaria mais do que paga.

Podemos constatar que as leis sumerianas sobre reparação pecuniária influenciaram o mundo por milênios e se relacionam até com a Torá de Moisés quando a Bíblia contempla algumas hipóteses de indenização por ofensas. No Código da Aliança (Êxodo 20.22-23.19), a sedução de uma virgem em Israel poderia resultar em reparação financeira caso o pai recusasse a dar sua filha em casamento. Conforme se lê em Êx 22.16-17, “avançar o sinal” sem nem ao menos estar noivo não era nada barato:

“Se alguém seduzir qualquer virgem que não estava desposada e se deitar com ela, pagará seu dote e a tomará por mulher. Se o pai dela definitivamente recusar dar-lha, pagará ele em dinheiro conforme o dote das virgens.” (ARA)

Por sua vez, em Deuteronômio, a difamação de uma jovem acusada pelo marido de não ter sido entregue virgem pela família poderia render cem ciclos de prata pagos pelo genro ao sogro além do castigo físico (Dt 22.13-19). Tal norma foi imposta para que a dor da humilhação social fosse sentida também na pele de quem violou a honra de uma mulher israelita. Seria o somatório da multa com os açoites. Porém, se pensarmos pelo ponto de vista da esposa, esta jamais conseguiria que o marido lhe desse o divórcio caso fosse de sua vontade (entre os hebreus antigos só o homem poderia dar uma carta de separação).

Atualmente temos o instituto do dano moral que é largamente aplicado pelos tribunais brasileiros e de outros países. Nosso direito não faz nenhum tabelamento de preços para as indenizações, mas prevê constitucionalmente o direito da vítima em ser reparada num valor que seja proporcional ao agravo (art. 5º, incisos V e X). Desta maneira, o constituinte apoiou-se no princípio da razoabilidade para que o Judiciário então fizesse a avaliação do dano imaterial, cabendo ao magistrado decidir sobre quanto o lesionador deve pagar por uma ofensa verbal, um olho que ficou cego, uma restrição indevida no SPC/SERASA ou até mesmo um atraso de horas no voo aéreo.

Mas será que os conflitos conseguem ser realmente pacificados por meio de um pagamento em dinheiro?!

Dificilmente um homem íntegro fica satisfeito por receber uma indenização por calúnias, xingamentos ou agressões físicas. Há vítimas que não querem receber nada do ofensor e optariam até por retribuições mais severas. Seja por orgulho ou por simples impossibilidade de recomposição do dano em dinheiro.

Se a vítima for pessoa muito rica, do que lhe adiantará receber quarenta salários mínimos de um agressor que também seja cheio da grana?!

E o que dizermos da corrupção gerada no meio social em que pessoas começam a viver em função da indústria das indenizações, procurando situações que possam render lucros com o dano moral? Nos Estados Unidos, por exemplo, há quem se jogue até diante de um automóvel para tentar uma grana extra na Justiça e, no Brasil, as coisas não têm sido diferentes na rotina dos Juizados Especiais e Justiça do Trabalho, havendo também advogados que colaboram com o oportunismo de seus clientes.

Curiosamente, a Lei de Moisés acolheu o princípio do talião. É o que se lê no Código da Aliança, além do que consta na Lei de Santidade (Lv 24.19-20) e no Código Deuteronômico (Dt 29.21), repetindo-se, portanto, três vezes na Bíblia:

“Mas, se houver dano grave, então, darás vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferimento por ferimento, golpe por golpe.” (Êx 21.23-25; ARA)

Ora, se pensarmos que “olho por olho” não deve ser aplicado literalmente por expressar idiomaticamente o princípio de que a punição deva equivaler à gravidade do crime, então o semita Código de Hammurabi teria sido mais avançado do as leis sumerianas que o antecederam a partir do século XXII a.C. Mas claro que, na avaliação desse progresso, onde penas de até 40 açoites poderiam ser aplicadas ao réu, dificilmente algum humanista concordaria que o criminoso seja punido com castigos físicos nos dias de hoje.

Não deve ter sido por menos que as leis de Eshnunna vieram a ser reformadas no primeiro império babilônico onde o sábio rei Hammurabi adotou o sistema do talião cujo significado literal é “tal qual”. Algo que, embora possa não ter se aplicado literalmente em relação à expressão “olho por olho”, acabou se revelando de qualquer modo brutal porque, no fim das contas, gera uma perda dos dois lados. Funciona bem para por uma sociedade em equilíbrio, mas acaba resultando em duas pessoas lesadas.

Quem já se vingou alguma vez nunca se deu conta da sensação de vazio que é percebida logo depois que a retribuição é consumada? O que fazer depois que o outro recebeu o troco?!

Pois bem. Por que razão Jesus condenou a aplicação da vingança quando teria discursado no Sermão da Montanha (Mt 5.38-42)? Qual o benefício de “dar a outra face” quando deixo de exercer o meu direito de obter uma justa retribuição contra o meu ofensor?

Infelizmente os homens na época de Eshnunna desconheciam o perdão e, se não fosse o enigmático princípio do talião de Hammurabi, talvez a humanidade nem teria chegado a tão grandiosa descoberta. Com isto, abre-se caminho para o amor e para que ocorra uma regeneração social, uma voluntária mudança de atitude por parte do agressor e a recomposição do dano multiplicada por mil, gerando satisfação para todas as partes. Tanto quem libera o perdão quanto quem o recebe passa a compartilhar da alegria da convivência restaurada em que o evento ruim tornou-se em coisa boa.

Que haja mais perdão no mundo!


OBS: A primeira ilustração trata-se de um achado arqueológico do Código de Ur-Nammu e o segundo das leis de Eshnunna. Tem-se em seguida a Bíblia e a capa de um exemplar da nossa Constituição Federal de 1988. Já a última imagem refere-se ao quadro O Sermão da Montanha, uma pintura do artista dinarmaquês Carl Heinrich Bloch (1834-1890)

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