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domingo, 25 de março de 2012

Que se faça a vontade de Deus!

Há um texto da Bíblia que mexe com as concepções de muitos cristãos acerca de Jesus. Trata-se de uma passagem na qual os evangelhos sinóticos não escondem dos leitores o lado fraco do Messias experimentado no Getsêmani ou Jardim das Oliveiras. É o que diz o terceiro evangelho cuja autoria é atribuída ao médico Lucas, segundo a tradição cristã herdada do catolicismo:

“E, saindo, foi como de costume, para o monte das Oliveiras; e os discípulos o acompanharam. Chegando ao lugar escolhido, Jesus lhes disse: Orai, para que não entreis em tentação. Ele, por sua vez, se afastou, cerca de um tiro de pedra, e, de joelhos, orava, dizendo: Pai, se queres, passa de mim este cálice; contudo, não se faça a minha vontade, e sim a tua.” (Lucas 22.39-42; ARA)

Neste episódio, o Cristo que havia realizado prodigiosos milagres e também repreendido a Pedro quando ele se opusera ao primeiro anúncio de sua morte, chamando-o naquele momento de “Satanás” (Mt 16.23), estava então enfraquecido diante da tomada de consciência de que não escaparia da crucificação. Seu lado humano estava ali bem vivo e lutando contra o cruel propósito de auto-sacrifício para o rompimento de todas as teologias penitenciais. Eram as defesas do software do sistema operacional da natureza buscando a preservação de si mesmo.

Lembro que, num momento vergonhoso de minha vida, senti o que significa amarelar na hora agá. Em fevereiro de 2010, eu tinha uma simples operação marcada no Hospital Municipal Raul Sertã (Nova Friburgo) para a retirada de dois sinais no rosto. Meses atrás, eu havia encarado aquela longa fila do SUS, consultado-me com o dermatologista para pegar o encaminhamento pra cirurgia, submetido-me a todos os exames necessários, buscado as maneiras cabíveis para adiantar a consulta com o cirurgião e ainda contei pra muita gente que iria tirar de vez as duas pintinhas da cara. Porém, quando entrei na sala de cirurgia, no dia 23/02 daquele ano, e a enfermeira encostou em minha barriga uma chapa de metal para que eu não sentisse choque pelo uso do bisturi elétrico, pedi para o médico nem aplicar a anestesia. Levantei-me dali e voltei para casa.

Por muito menos do que Jesus eu desci da cruz naquela terça-feira! Porém, felizmente, não estava em jogo o destino da humanidade. Tão pouco era uma situação de risco de vida pois aquela operação tratava-se de um procedimento preventivo e que me traria mais conforto na hora de fazer a barba já que o meu sinal entre o queixo e o lábio inferior esquerdo costuma sangrar quando passo a gilete em cima da pinta. Mesmo assim aquela situação vexamosa pôs em evidência a fraqueza que tenho, revelou o lado frouxo de um machão que se orgulha de tomar um suco de maracujá puro ou uma limonada sem adoçar.

Aconteceu que, neste mês de março, senti-me verdadeiramente atravessando uma tentação semelhante a de Jesus em sua agonia no Getsêmani. Desde o dia em que assumi a curatela especial de minha avó materna, em 09/03/2012, compareci ao hospital onde ela se internou quase todos os dias até o seu falecimento em 21/03. Foram ao todo onze viagens entre os bairros de Grajaú e Acari onde encontra-se situado o Hospital Municipal Ronaldo Gazolla, percorrendo o trajeto de ônibus e de metrô ou então tomando dois ônibus.

Seria muito fácil pra mim neste momento dar uma de bom moço ao escrever todas estas palavras de crente sofredor em meu blogue já que o leitor, na condição de um observador externo, mal sabe tudo aquilo que se passa na cabeça do ambíguo Rodrigo. E aí certamente seria um equívoco achar que suportei todo aquele sofrimento com alegria no coração como se, no fundo, não estivesse praticando a caridade muitas vezes motivado por um constrangimento moral. Algo que, inegavelmente, distancia-se bastante do amor puro descrito na epístola de 1ª Coríntios, capítulo 13:

“E ainda que eu distribua todos os meus bens entre os pobres e ainda que entregue o meu próprio corpo para ser queimado, se não tiver amor, nada disso me aproveitará. O amor é paciente, é benigno; o amor não arde em ciúmes, não se ufana, não se ensoberbece, não se conduz inconvenientemente, não procura os seus interesses, não se exaspera, não se ressente do mal; não se alegra com a injustiça, mas regozija-se com a verdade; tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.” (1Co 13.3-7; ARA)

Quando escrevia na internet que desejava lutar pela vida de minha avó, eis que, no fundo, meus sentimentos estavam bem confusos e eu apenas determinava a minha escolha em continuar assistindo-a. Nunca revelei que, durante suas crises de gemido no hospital, minhas emoções já ficavam esperando pela sua morte e pelo fim de todo aquele drama. Os pensamentos mais vis passavam pela minha mente e eu tentava inutilmente expulsar a ideia de fazer uma viagem turística dias depois que seu corpo fosse enterrado no cemitério. E aí, quando cogitava da hipótese de que vovó saísse dali, ficava internamente estafado só em imaginar por quantos dias, semanas ou meses ainda precisaria ficar indo até Acari e, ao mesmo tempo, ainda dar conta do meu trabalho, estudar, dar atenção à esposa, equilibrar as finanças, etc.

Em seu esgotamento psicológico máximo, momentos antes de ser preso pelos soldados, Jesus reportou-se ao Pai em oração. Diz a epístola anônima aos Hebreus que

“Ele, Jesus, nos dias de sua carne, tendo oferecido, com forte clamor e lágrimas, orações e súplicas a quem o podia livrar da morte e tendo sido ouvido, por causa da sua piedade, embora sendo Filho, aprendeu a obediência pelas coisas que sofreu e, tendo sido aperfeiçoado, tornou-se o Autor da salvação eterna para todos os que lhe obedecem” (Hb 5.7-9; ARA)

Este mesmo texto o escritor cristão norte-americano Philip Yancey desenvolve de maneira magistral relacionando ao episódio do Getsêmani:

“De algum modo, no Getsêmani Jesus lidou com aquela crise transferindo o fardo para o pai. Era a vontade de Deus que ele viera cumprir, no fim das contas, e sua oração resolveu-se nestas palavras: 'Contudo, não seja como e quero, mas sim como tu querer'” (in Igreja: “por que me importar?”)

Conforme compartilhei no texto anterior publicado aqui neste blogue, cheguei à seguinte conclusão no auge da crise ocorrida justamente na noite do dia 20 pra 21/03 (horas antes do seu falecimento). Mesmo contrariando os meus sentimentos egoístas pensei:

“Se vovó durasse mais outra semana, amém. Se ela aguentasse mais tempo no hospital, saísse milagrosamente do CTI, retornasse para a enfermaria, passasse por uma clínica de reabilitação e voltasse para casa, amém também. E, se Deus quisesse levá-la logo, o que se haveria de fazer? Em todos os casos, inclusive nas hipóteses não vislumbradas, restar-me-ia somente a tarefa de continuar prestando o meu apoio indo até aquele hospital e fazer a minha parte para glorificar unicamente ao Pai. Jamais o meu insuflado ego” (http://doutorrodrigoluz.blogspot.com.br/2012/03/e-vovo-finalmente-descansou.html?showComment=1332651402978)

Finalizei meditando que, em todos os casos, inclusive nas hipóteses não vislumbradas ou não expostas, restar-me-ia a tarefa de continuar indo todas as tardes ao hospital quando ninguém pudesse estar presente lá no meu lugar. Pois, só assim, eu estaria cumprindo a minha parte para louvor unicamente de Deus e não do meu ego.

Evidentemente que não chego nem aos pés do meu Senhor Jesus e, no fundo, reconheço o verme que sou. Porém, não me condeno por passar pelas crises. Com todas as minhas falhas e desvios de caráter, Deus permitiu que eu carregasse uma cruz cujo peso foi adequado à capacidade de suporte e, horas depois daquela luta interna, tudo foi consumado pela vontade do Soberano Rei do Universo. Pois foi o que o Messias nos ensinou em sua fraqueza para que as coisas não sejam como nosso ego quer e sim conforme a vontade do Pai Eterno.

Agora que as coisas andam calmas, não me arrependo de nada do que fiz de bom pela minha avó e graças dou a Deus porque provações como esta ensinaram a este egocêntrico blogueiro a oferecer a sua vida no altar do Pai no dia a dia. Nele aprendi a buscar forças para prosseguir pelas escorregadias trilhas da minha ambiguidade natural, contribuindo para que Cristo possa viver em mim. Pois, assim como Jesus aprendeu a obedecer, nós também precisamos aprender a ser corajosos nos momentos em que sentimos vontade de fugir dos desafios. E, ainda que venhamos a falhar, a divina graça virá em nosso favor dando-nos conforto e nova chance.

Uma boa semana a todos com novos começos e muita força de Deus!


OBS: A ilustração acima trata-se da obra Cristo no Getsêmani, uma pintura a óleo feita pelo artista alemão Heinrich Ferdinand Hofmann (1824-1911).

2 comentários:

  1. Em tempos de evangelho antropocêntrico, o "FAÇA-SE A TUA VONTADE" soa como agressão a fé!

    Mas que não é fácil, não é mesmo Rodrigão, tomar a postura do "cumpra em mim o teu querer".

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  2. Olá, Franklin!

    Reconheço o quanto é difícil. Ainda mais quando convivemos com um anti-evangelho que ainda alimenta o egocentrismo da pessoa que busca na religião um tipo de conforto em favor do próprio convencimento pessoal ai invés de lidar com a realidade.

    Felizmente podemos contar com a doce graça do Deus que nos ama, nos compreende e nos aceita. Na busca de fazer cumprir o querer de Deus em nós, em que lutamos contra nós mesmos, aprendemos com a surpreendente pedagogia divina. Hoje mesmo eu encontrei uma oração no Facebook que me acrescentou bastante:


    Senhor,
    Tu és o Bom Pastor.
    Eu sou a Tua ovelha.
    Em alguns dias, estou sujo;
    Em outros,estou doente.
    Em alguns dias,me escondo;
    Em outros, me revelo.
    Sou uma ovelha ora mansa,ora agitada.
    Sou uma ovelha ora perdida,ora reconhecida.
    Eu sou tua ovelha,Senhor.
    Eu conheço a Tua voz.
    É que ás vezes a surdez toma conta de mim.
    Eu sou tua ovelha,Senhor.
    Não permita que eu me perca,
    que eu me desvie do Teu rebanho.
    Mas se eu me perder,eu Te peço,Senhor,
    Vem me encontrar.
    Amém.




    Com toda a nossa ambiguidade, que é pertinente ao ser humano, seremos sempre compreendidos por Deus e por sua graça. Por isto, nunca devemos nos abandonar diante dos problemas e das coisas que afligem nossas mentes. E, quando achamos que estamos longe de Deus, tudo não passa de um grande equívoco.

    Com Jesus aprendemos que Deus tem prazer em conviver com homens pecadores, simples, sem o status da moral ou da política. Em Jesus conhecemos a manifestação profunda e próxima deste amor divino. Ele cumpriu o elevado propósito do Pai e depois voltou-se compreensivamente a Pedro e aos demais discípulos que falharam cumprimentando-lhes com a PAZ.

    Abraços.

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