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domingo, 5 de fevereiro de 2012

“Curai os enfermos”

Ultimamente tenho pensado sobre os “dons de curar”, os quais podem ter se manifestado verdadeiramente nos primeiros momentos da história eclesiástica e no período bíblico.

Citando o Santo Irineu em seu livro Além de toda a crença, a historiadora Elaine Pagels trás informações de que os milagres talvez pudessem fazer parte do cotidiano da Igreja no século II ou, ao menos, integrassem os discursos dos primeiros padres:

“Curamos os doentes impondo as mãos sobre eles, e expulsamos demônios (...) Até ressuscitamos mortos, muitos dos quais continuam vivos entre nós e perfeitamente saudáveis”.

Ao comissionar os discípulos para uma espécie de estágio experimental, Jesus orientou-os a oferecer cura aos enfermos, o que consta no modo imperativo em alguns textos dos evangelhos:

“Curai enfermos, ressuscitai mortos, purificai leprosos, expeli demônios; de graça recebestes, de graça dai” (Mateus 10.8; ARA).

Novamente, após ter ressuscitado, Jesus dá a ordem evangelística aos seus seguidores (Marcos 16.15). Esta é acompanhada pela manifestação das atividades de cura, exorcismos e a fala de “novas línguas” (glossolalia?), além de uma proteção sobrenatural contra a ingestão de veneno ou picada de serpentes (versos 17 e 18).

Lendo os textos do Novo Testamento, podemos constatar que essas coisas teriam sido confirmadas tanto no ministério de Jesus quanto dos seus discípulos (ver livro de Atos dos Apóstolos). E, igualmente, nas passagens das Escrituras hebraicas (o Antigo Testamento), podemos encontrar profetas como Elias e o seu sucessor Eliseu agindo como canais de milagres para o povo de Israel, precedendo assim aos relatos dos Evangelhos.

Ainda criança, por absorver um pouco da visão do tradicionalismo católico (se bem que a minha família não era religiosa), eu aceitava os milagres de uma maneira muito restrita. Assistindo uns filmes sobre Jesus em épocas de feriados santos, a ideia que fazia era de que as curas de cegos e de paralíticos estivessem relacionadas à bondosa pessoa de Jesus por ele ser considerado Deus. Porém, como o Cristo da Igreja foi morto e, quarenta dias depois de sua ressurreição, “subiu aos céus”, meu pensamento era que as curas prodigiosas só ocorreram mesmo durante o curto tempo da encarnação.

Quando tinha 10 anos e estudava catecismo num colégio de freiras de Juiz de Fora para poder receber a “primeira comunhão”, a vovó materna tornou-se frequentadora assídua da Igreja Universal do Reino de Deus. Nas férias de meio de ano de 1986, ao passar umas semanas em sua casa no Rio de Janeiro, fiquei perplexo com as supostas cenas de curas e de exorcismos presenciadas nas reuniões da IURD. E ali foi-me apresentada uma outra ideia de milagres como sendo um acontecimento contínuo, amplo e igual aos tempos de Jesus. Deste modo, as curas propagandeadas pelo bispo Edir Macedo na rádio Copacabana pareciam manifestar-se poderosamente nos prédios dos antigos cinemas comprados pela seita, como se a igreja dele fosse a verdadeira.

Apesar de ouvir muitos “testemunhos de fé” sobre cura divina nos cultos e nas pregações da IURD, nada de especial ocorria comigo durante os momentos de “oração forte” aos quais me submetia junto com a vovó. Ao comando do pastor, eu colocava aos mãos sobre os olhos e aguardava ficar livre da miopia e dos óculos dentro de instantes. Só que nada acontecia e eu me sentia até rejeitado por Deus quando abria as pálpebras sem conseguir enxergar com nitidez os objetos e pessoas mais distantes de mi. Ficava então indagando por que outros recebiam as bençãos e eu não. E, na minha mente, considerava as hipóteses sugestionadas pelos líderes e mebros da seita de que estivesse "faltando fé" pra receber a cura.

De lá pra cá muita coisa mudou e fui amadurecendo espiritualmente, tendo me interessado bastante por estudar a Bíblia. Conheci o entendimento de outras igrejas evangélicas mais céticas às atividades de curandeirismo dos pentecostais e que, neste ponto, não se diferem muito do tradicionalismo católico. Fui pra uma igreja batista renovada que não aceitou os batismos católico e da IURD, de modo que passei pelas águas mais uma vez. E, recebendo uma sólida formação doutrinária ali, passei a aceitar a ocorrência de milagres nos dias de hoje, desde que condicionados à vontade divina e que se operariam em contextos levemente distintos daqueles vistos nos meios neo-pentecostais.

Recordo-me do dia em que a então missionária Valnice Milhomens visitou aquela igreja em que eu, desde os tempos da IURD, estava super ansioso para ser agraciado com o “batismo no Espírito Santo”, o que, por uns tempos, via até como um pré-requisito para a salvação. Na ocasião, orei ardentemente entre pessoas que se amontoavam e se apegavam umas nas outras. Aí, quando menos dei conta, estava eu deitado no chão como se uma força poderosa vindo de cima tivesse me derrubado. Nesta hora, uns irmãos vieram orar impondo as mãos sobre minha cabeça para que eu “falasse em línguas”. Só que não houve jeito, mas saí do culto sugestionado que teria recebido o tal batismo.

Semanas depois, fui duvidando daquela experiência no meu íntimo. Cheguei ao ponto de suspeitar que alguém do meu lado tivesse me movimentado enquanto orava na “busca do Espírito”, de modo que a tontura pudesse ter decorrido de uma situação indutiva sem nenhum acontecimento sobrenatural. E, por muito tempo, este questionamento colocou-me em conflitos com a minha fé de adolescente imaturo.

Não faz muito tempo, um jovem perguntou-me pela internet sobre o que consistiam as “línguas dos anjos” das quais Paulo se refere na epístola aos Coríntios (1Co 13.1).

Seriam tais línguas realmente um fato sobrenatural ou um modo de expressão usado pelo autor para escrever sobre o amor? Foi mais ou menos isto que ele quis saber conforme o teor da mensagem escrita em internetês:

“eu tenho duvida a respeito ao dom de linguas q paulo fala pq acredito q seja outro idioma pq paulo andou por varios lugares c idiomas diferentes pq acho q hashalabasuriancas eh viagem kkk e lingua dos anjos acredito q paulo fala metaforicamente + paulo fala q eh p edificaçao propria + como uma pessoa vai edificar a si mesma se ela mesma n entende o q ela fala? + paulo fala p a pessoa orar p interpretar e q a pessoa fala misterios a Deus tipo e Paulo fala q haja interprete p outras pessoas serem edificadas tipo acredito q ou seja uma parada mt sobrenatural ou eh um idioma jah existente, qual a sua opiniao em relaçao a isso?”

Respondi então ao rapaz com as palavras a seguir transcritas do meu Facebook, tendo alertado-o que, embora pudéssemos compreender melhor pela experimentação, eu duvido de muitas das manifestações que se vê por aí no meio pentecostal:

“Sinceramente não tenho muito a opinar sobre algo que careço de experimentação. Muita coisa sobre o cristianismo primitivo perdeu-se durante a história eclesiástica, assim como dos antigos hebreus (p. ex. o "transe profético" do livro de I Samuel). Existiu de fato uma "língua dos anjos" ou o autor de 1Coríntios fala apenas metaforicamente no cap. 13 sobre a excelência do amor? Não sabemos. Logo, restam-nos apenas inconclusivas hipóteses. Abraços.”

Voltando à questão da cura e refletindo sobre o que diz a Bíblia, eis que, no capítulo precedente ao amor, Paulo faz uma lista de dons espirituais concedidos por Deus. Ali, o apóstolo menciona os “dons de curar” e as “operações de milagres”, além da “variedade de línguas” e a “capacidade de interpretá-las” (ver 1Co 12.8-10), dando a entender que também são capacidades buscadas pelas próprias pessoas da congregação (verso 31a).

Ora, o que significa “procurar os dons espirituais”? E em que isto poderia ser aplicado em relação à ordem dada por Jesus para que os seus discípulos curassem os enfermos?

Sem dúvida que o emprego dos dons espirituais deve estar voltado para a satisfação das necessidades das pessoas pertencentes a uma comunidade eclesiástica. Tanto é que, no capítulo 14 da epístola, Paulo orienta os seus destinatários a buscarem o “dom de profecia” numa comparação com a utilidade (circunstancial?) das línguas. E o capítulo 13, situado entre os direcionamentos do 12 e do 14, esclarece sobre o contexto amoroso no qual as atividades espirituais devem ser desenvolvidas.

Mesmo sem experimentar ministerialmente os “dons de curar” faço aqui algumas suposições sobre o que vem a ser isto.

Estaria este dom relacionado à percepção ou ao diagnóstico do estado de saúde físico, mental e espiritual da pessoa enferma?

Por acaso o desenvolvimento de um dom de cura não teria mais a ver com a sensibilidade de quem se dispõe a promover a saúde total dos outros?

Pode-se dizer que, em suas origens, os estudos e práticas da Medicina sempre estiveram ligados à busca de explicações sobrenaturais, tal como fazia Hipócrates que viveu entre os anos 460 a 377 antes da era comum, assemelhando-se de certo modo com a percepção dos hindus e chineses. Antes dele, magos egípcios tentavam curar pessoas através de encantamentos e práticas baseadas na tradição empírica. E, na Bíblia, tem-se o diagnóstico da “lepra” pelos sacerdotes hebreus através da observação (ver capítulo 13 de Levítico).

Neste sentido, eis que, no começo da era cristã, mesmo com os relativos avanços obtidos pelos gregos sucessores de Hipócrates, a saúde humana ainda era relacionada com a fé nos deuses, com as bênçãos e maldições decorrentes da obediência aos preceitos religiosos, a prática de rituais, sacrifícios, uso de amuletos, etc. No próprio Judaísmo antigo, podemos constatar pela leitura bíblica de que a doença era encarada como uma situação decorrente do pecado. Tanto é que, no capítulo 9 de João, o autor mostra os discípulos perguntando a Jesus se a enfermidade de um cego de nascença seria decorrente de seu próprio pecado ou de seus pais. Já em outras situações descritas pelos evangelhos, tem-se uma ligação direta entre um assédio demoníaco e o estado de saúde do sujeito.

Felizmente a Medicina avançou muito. Tanto em termo de diagnóstico quanto aos métodos de tratamento hoje empregados. Desvinculado dos dogmas religiosos, o saber científico contribuiu para libertar a humanidade de terríveis preconceitos e das maneiras equivocadas de se lidar com os problemas. Porém, a grande maioria dos nossos doutores parece ter perdido aquela sensibilidade que poderíamos chamar de visão holística, alienando-se quanto à dimensão espiritual. E isto se vê claramente quando os médicos entopem os seus paciente de remédios. Principalmente os antidepressivos e drogas para aliviar dores ou inflamações.

Acredito que, mesmo nos dias de hoje, os “dons de curar” continuam tendo lugar na nossa sociedade, funcionando como uma respeitável leitura da realidade total com possibilidade de se harmonizar com a ciência. Pois, ajudar uma pessoa a tomar consciência da relação que há entre o seu modo de vida errado e a enfermidade pode significar a cura dos doentes como talvez acontecesse nos tempos bíblicos.

Logicamente que há muita enganação nos meios daqueles que dizem oferecer curas espirituais ou falam em “métodos alternativos”. Ainda mais quando a proposta está baseada na concessão de resultados imediatos ou em barganhas financeiras, criando expectativas em torno de uma ação mágica. Uns usam os nomes de Jesus, Maria, de anjos, entidades das religiões afro, cristais, energia cósmica ou “cirurgias” de espíritos “iluminados”. Porém, há sempre uma negação da graça nesses casos.

Lembrando o já citado versículo do Evangelho de Mateus, de graça nós recebemos e, de graça, devemos compartilhar. Logo, se o conhecimento foi dado graciosamente por Deus, o exercício dos dons de curar jamais deve ser transmitido em cursos com fins lucrativos, sendo que a transmissão de conhecimentos sobre cura precisa estar baseada no amor e buscando sempre o bem das pessoas da comunidade na qual nos encontramos.

Espero que a Igreja deste século XXI possa voltar-se com sinceridade e seriedade para estudos sobre a cura para que, deste modo, comece a oferecer aquilo que de alguma maneira pode ter sido parte integrante das boas novas de Jesus.


OBS 1: A ilustração acima retrata a cura de um cego feita por Jesus. Foi pintado com óleo sobre madeira, por volta da metade do século XVII, pelas mãos do pintor francês Eustache Le Sueur (1616–1655). A obra encontra-se na galeria de imagens do palácio de Sanssouci, situado em Potsdam, Alemanha.

OBS 2: Este texto de minha autoria foi inicialmente publicado no blogue da Confraria Teológica Logos e Mythos em http://logosemithos.blogspot.com/2012/02/curai-os-enfermos.html

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