Páginas

terça-feira, 13 de setembro de 2011

O dia em que Jesus se aperfeiçoou

Uma das passagens dos evangelhos que muitos cristãos evitam refletir ou se aprofundar diz respeito à cura da filha de uma mulher estrangeira concedida por Jesus. Este episódio encontra-se tanto em Mateus (15.21-28) como em Marcos (7.24-30), sendo que, devido ao melhor detalhamento do 1º Evangelho, escolhi transcrever esta citação abaixo:

"E, partindo Jesus dali, foi para as partes de Tiro e de Sidom. E eis que uma mulher cananeia, que saíra daquelas cercanias, clamou, dizendo: Senhor, Filho de Davi, tem misericórdia de mim, que minha filha está miseravelmente endemoninhada. Mas ele não lhe respondeu palavra. E os seus discípulos, chegando ao pé dele, rogaram-lhe, dizendo: Despede-a, que vem gritando atrás de nós. E ele, respondendo, disse: Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel. Então chegou ela, e adorou-o, dizendo: Senhor, socorre-me! Ele, porém, respondendo, disse: Não é bom pegar no pão dos filhos e deitá-lo aos cachorrinhos. E ela disse: Sim, Senhor, mas também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus senhores. Então respondeu Jesus, e disse-lhe: O mulher, grande é a tua fé! Seja isso feito para contigo como tu desejas. E desde aquela hora a sua filha ficou sã." (Mt 15.21-28; versão de Almeida Corrigida e Revisada Fiel)

Existem diversos posicionamentos acerca do que foi narrado pelo escritor do Evangelho. Uns entendem que Jesus estava testando a fé daquela mulher, fazendo do episódio uma explicação para o não recebimento de milagres. Outros compreendem que o motivo do relato seria para justificar o ingresso de não judeus no Reino de Deus, aludindo aos "tempos dos gentios". Tem ainda aqueles que interpretam o envio de Jesus "às ovelhas perdidas da casa de Israel" como um forte argumento pró-judaizante. Porém, o certo é que a grande maioria dos leitores cristãos se sentem mesmo incomodados com o que leem e preferem não se pronunciar quanto à atitude chauvinista que, a partir deste momento, foi abandonada por Jesus.

Quando nos fechamos dentro de uma concepção pronta e acabada em relação a qualquer assunto, corremos o sério risco de empobrecer a nossa visão de mundo e também deixarmos de exercitar a capacidade de reflexão dada pelo Criador. Assim, a fuga de termos paradoxais torna-se uma atitude imatura e estúpida da mente religiosa, além de ser uma conduta que jamais poderá responder às inquietações íntimas que trazemos. Logo, fugir de uma reflexão sobre o texto porque ele perturba as concepções sobre um messias divinizado e/ou perfeito não vale a pena.

Não tenho a mínima pretensão de querer explicar de maneira completa o significado da passagem bíblica em análise e nem de invalidar outras interpretações existentes quanto ao assunto, gerando polêmicas sem sentido na internet. Porém, a graça de Deus me dá plena liberdade de escrever algo que entendo ser útil para a edificação, ainda que aos olhos de muitos possa parecer herético e desafiador à castradora ortodoxia cristã. E vai ser com este desprendimento que pretendo expor o meu pensamento nas próximas linhas.

Por algum motivo, Jesus e seus discípulos precisaram sair do território da Palestina. Estavam eles em numa região vizinha e que também era dominada pelo gigantesco Império Romano com o predomínio da cultura helenista.

Séculos antes, a Palestina esteve sob o domínio dos gregos. Um rei perverso chamado Antíoco Epífanes tentou de diversas maneiras impor aos judeus o universalismo da cultura helenista. Guerras e revoltas aconteceram e, numa determinada ocasião, afim de ferir frontalmente a nação judaica, Antíoco invadiu o Templo de Jerusalém e profanou o santuário. Costumes da Torá de muitos séculos foram mudados e a prática da religião do povo encontrava-se seriamente ameaçada.

Jerusalém não aceitou ser transformada em mais uma Antioquia (a exemplo das Alexandrias de Alexandre Magno). Reagindo à dominação cultural, os judeus enfrentaram militarmente a invasão grega dentro do território israelita, lutando bravamente durante os dois séculos que antecederam a vinda de Jesus. O ódio entre gregos e judeus aumentou cada vez mais. E Israel era a única nação dominada pelo então Império Selêucida que ainda não havia sido assimilado pelo helenismo.

Sob a dominação romana, os judeus alcançaram uma convivência menos pior do que quando foram anexados pelos gregos. Porém, os conflitos entre gregos e judeus não terminaram. Havia cidades gregas na Palestina e muitos soldados de Roma que oprimiam com arrogância a nação judaica eram de origem grega. Pertinho de Nazaré, aldeia onde Jesus foi criado, ficava a cidade Séforis com sua arquitetura helênica que chegou a ser o centro administrativo da Galileia na época.

Presenciando de perto a opressão estrangeira desde criança, Jesus fez a sua opção ministerial pelas pessoas pobres de seu povo. E, dentro deste contexto, não seria surpreendente que Jesus tivesse sido influenciado pelo pensamento etnocentrista dos judeus de seu tempo. Por ter nascido homem como todos nós, Jesus precisou que o ensinassem a falar, andar, vestir-se com o talit, alimentar-se, ter os hábitos de higiene dos anciãos (as ablusões), fazer orações, ler as porções da Torá nos dias de sábado nas sinagogas e até mesmo a interpretar as Escrituras. Logo, é evidente que a visão de Jesus foi influenciada pelas duas escolas formadoras do pensamento rabínico, as quais refletiam as ideias de dois mestres mencionados pela Mishná - Shamai e o ancião Hillel.

Antes de Jesus ter iniciado o seu ministério, Hillel e Shamai já divergiam entre si quanto à aceitação de prosélitos gentios dentro do judaísmo, Enquanto o ancião Hillel era mais flexível, Shamai mostrava-se mais fechado.

Nos ditos atribuídos a Jesus nos Evangelhos sinóticos, nota-se a presença tanto do pensamento de Shamai quanto de Hillel, embora com uma possível predominância deste. Só que, em ideias relacionadas ao divórcio e à evangelização dos não judeus, há mais semelhanças com o pensamento de Shamai como se observa na orientação dada nos versos de 5 a 6 do capítulo 10 do 1º Evangelho aos discípulos, quando estes foram comissionados pelo Mestre:

"Não tomeis o caminho dos gentios, nem entreis em cidade de samaritanos. Dirigi-vos, antes, às ovelhas perdidas da casa de Israel." (Mt 10.5-6; versão da Bíblia de Jerusalém - BJ)

A grande beleza que encontro no áspero diálogo de Jesus com a mulher siro-fenícia é a capacidade de transcendência do Mestre, o qual se abriu para aprender com aquela sábia estrangeira do sexo feminino.

Ora, certamente que, quando consideramos o Messias como alguém profundamente humano, fica muito mais fácil admirar-se diante da passagem bíblica em comento. Pois, se Jesus era de carne e osso, já não podemos exigir dele onipresença, onisciência, onipotência e muito menos perfeição moral (como se fosse possível enquadrar seres humanos dentro de um padrão nosso de comportamento).

No livro de Isaías, depois do profeta mencionar o nascimento do Emanuel através de uma "jovem" que iria conceber, ele também falou que a futura criança iria aprender a rejeitar o mal: "Ele se alimentará de coalhada e de mel até que saiba rejeitar o mal e escolher o bem." (Is 7.15; BJ)

Com o encargo de aprender a não se deixar dominar pelo mal e escolher o bem, dentro dos limites da humanidade igual a todos, Jesus precisou desenvolver a reflexão, a alteridade e o amor pelo diferente. Ao conceder cura à filha daquela mulher, Jesus fez uma escolha que, como já foi demonstrado acima, seria bastante difícil para um judeu que vivia naquela época debaixo da opressão estrangeira e de um sistema político-econômico vil.

Fico imaginando a situação de um líder sindical de trabalhadores rurais explorados por poderosos fazendeiros. Supondo que, às custas de muito esforço e perseguições, esta presidente do sindicato consiga construir e equipar um pequeno posto de saúde para atender às empobrecidas famílias dos empregados das glebas numa determinada região. Aí, um belo dia, aparece desesperada a esposa de um rico pecuarista precisando de socorro urgente para um filho doente e o líder sindical precisa rever todas as suas concepções de vida para permitir atendimento para quem não tinha direito.

Igualmente é com embaraço ainda maior que Jesus parece ter passado quando procurado por aquela mulher estrangeira, a qual nem ao menos foi recomendado por cidadãos judeus como havia acontecido no caso da cura do servo do centurião romano (Lc 7.3). Tanto é que ela se humilhou implorando graça para sua filha.

Com isto, pode-se dizer que o homem Jesus transcendeu naquele dia. O esperado Messias de Israel foi influenciado pela fé de uma estrangeira e mudou de posição. Sua maneira de pensar teve que ser revista e o Mestre deixou de lado o xenofobismo para liberar a bênção sobre alguém pertencente a um povo opressor aos judeus (daí o termo depreciativo "cachorrinhos" descrito pelo evangelista).

É pelo mesmo caminho de Jesus que nós devemos andar. Não temos que alimentar ambições loucas de santidade perfeccionista, mas sim andarmos com graça rumo ao nosso melhoramento ético e existencial, o qual deve ser feito com abertura. Precisamos estar disponíveis para mudanças de posições afim de acolhermos quem quer que se encontre no nosso caminho, independentemente da pessoa crer em Deus ou não da mesma maneira que nós. Pois só assim é que vamos de fato conseguir amparar o outro, sem impormos requisitos quanto à origem, classe social, ideologia política, posição moral, grau de instrução, poder aquisitivo, idade, profissão, sexo e até mesmo a orientação sexual.


OBS: A ilustração acima refere-se encontra-se
no Très Riches Heures du Duc de Berry (em português, As mui ricas horas do duque de Berry), importante obra religiosa do século XV. Extraí a imagem da Wikipédia, sendo tal material de domínio público.

6 comentários:

  1. rODRIGO,

    Gostei da sua visão sobre Jesus ter atitudes etnocentrista, é bem verdade que ele pensou no seu povo primeiro, mesmo o povo ficar sem pensar nele.

    O bom é que ele venceu a xenofobia, reformulou a mente, e efetuou a cura psíquica da filha da cananeia.

    Mudando um pouco de assunto, hoje é sua vez de postar na Confraria dos Pensadores Fora da Gaiola.

    Abraços é ótimo dia!!!

    ResponderExcluir
  2. KARAKA!!! Radical essa interpretação Rodrigão para aqueles que se fecham em teologias herméticas!

    Com toda certeza desmistifica alguns pressupostos de perfeiçãop do Mestre! Diriam os ortodoxos: "ISSO É BLASFÊMIA, PRA FOGUEIRA!!!"

    Outra passagem que mostra o lado humano com tendências de comportamento não tão louváveis do Mestre é a expulsão dos cambistas do templo.

    Apesar de ter tido uma atitude de moralizar a coisa, ainda assim ele usou de certa violência.

    Tenho certeza que alguns podem chegar aqui com teologias prontas querendo refutar e amenizar a cena, mas sinceramente não dá!

    Ou se bate de chicote como se faria com luva de pelica?! Difícil explicar isso também não é?

    Ou Jesus diria aos safados exploradores da boa fé do povo com oratória conciliadora num tom zem bem oriental e um chicote capaz de arrancar o couro, nesses termos:

    Nobres e caros exploradores do templo, temo que terei de aplicar uma lição em vcs, não o queria mas o dever me impele, terei de chicoteá-los".

    Seria até cômico.

    São incômodos os textos mas temos que encará-los.

    ResponderExcluir
  3. Rodrigo


    Gostei demais da interpretação bem humana que você fez de Jesus.

    Lendo o teu texto, confesso que vi em minha imaginação um Cristo pedindo desculpas àquela mulher.

    Por que não? (rsrs)

    ResponderExcluir
  4. rodrigo, o que é bem interessante ao meu ver, é esta passagem estar registrada no evangelho de mateus, sabidamente, o mais "judeu" de todos. isso pode nos informar da historicidade dessa passagem da vida de jesus.

    teu texto está perfeito, bem tecido, bem escrito, e a interpretação que você dá, já a tempos, eu percebia como a mais plausível.

    aliás, a atitude de jesus está em perfeita harmonia com sua humanidade, inclusive ao chamar a mulher de "cachorrinho", pois o cão era uma animal não bem visto pelos judeus, pois ele comia o próprio vômito, portanto, um animal impuro.

    para os nossos irmãos mais ortodoxos, vai aí um outro viés: vejam como a atitude de alguém pode mover o coração e os propósitos de deus.

    olha, este texto tem que ir lá para o caminhos da teologia, pois quero abrir um marcador lá sobre cristologia/jesus histórico, e textos como este cairão muito bem.

    vou deixar passar um tempo para voltar a republicar por lá, ok? afinal, você agora é sócio majoritário do caminhos da teologia....rsssss

    olha, eu acabei não publicando o seu texto que você me pediu lá na confraria, peço-lhe desculpas, mas vou publicar o seu texto quando for a minha vez, ok? estou mesmo com o tempo apertado para escrever para lá nos próximos dias.

    e o levi imaginou bem: jesus pedindo desculpas e agradecendo àquela mulher por ter lhe aberto o horizonte para além do seu próprio povo.

    ResponderExcluir
  5. Olá, amigos.

    Obrigado aí pelos comentários de vocês.

    Crendo num Jesus essencialmente humano (ele referia a si mesmo como o "filho do homem"), fica mais fácil que ele era passível de cometer falhas de entendimento, de ideias, de atitudes e de previsões de sua parte. Pois ele apenas não perdeu o foco daquilo que entendia ser a sua missão. E, tendo vencido a xenofobia, como colocou acima o Hubner, mostra que este sim é o modelo humano que nos inspira.

    Mas o Franklin levantou aí outro ponto intrigante e também interessante sobre Jesus - a expulsão violenta dos vendilões do Templo. Algo que se mostra contraditório com o dito do Sermão do Monte: "bem aventurado os pacificadores (...)". Pois se trata de algo ambíguo, mas que parece ser bem autêntico tal como a cura da filha da mulher cananeia. E aí confesso que há muitas dificuldades de enquadrarmos aquele episódio dentro dos nossos valores, mas que não seria motivo para nos afastarmos de uma profunda reflexão a respeito.

    Boa a colocação acima do Levi. É sim possível que, naquele momento ou depois, Jesus tenha tido vontade de pedir desculpas a mulher. Pois a menção desta passagem nos Evangelho não foi casual. O escritor, na certa, desejou passar algo aos seus leitores da época registrando a única viagem para o exterior feita por Jesus na vida adulta que consta nos Evangelhos. E digo única viagem na vida adulta porque a moradia de Jesus no Egito (Alexandria?) teria acontecido apenas na infância, segundo o 1º Evangelho somente.

    Meditando sobre viagens, percebo o quanto é útil para o nosso crescimento "viajarmos" para perto da realidade do outro. Pois foi numa terra de cultura inimiga que Jesus viu de perto que aqueles estrangeiros opressores também sofriam problemas semelhantes que as pessoas de seu povo no interior de suas casas.

    Fico a pensar, por exemplo, no xenofobismo que muitos sentem em relação aos norte-americanos, considerando-os consumistas ignorantes. Porém, se pessoas assim passassem uns dias lá, elas mudariam de opinião porque encontrariam americanos conscientes da realidade global, gente pobre igual aqui, trabalhadores explorados, pacientes que não são atendidos adequadamente pelos sistemas de saúde (lá não existe SUS), famílias sem teto, etc.

    Lembrei agora de um excelente filme que se passa na Palestina atual - Lemon Tree (2008). Segundo a sua sinopse, Salma (Hiam Abbass) é uma viúva Palestina e que vê sua plantação ser ameaçada quando seu novo vizinho, o Ministro de Defesa de Israel (Doron Tavory), o qual havia se mudado para a casa ao lado. Com isto, a Força de Segurança Israelense logo declarou que os limoeiros de Salma colocam em risco a segurança do ministro e por isso tinham que ser derrubados. Salma precisou levar o caso à Suprema Corte de Israel para tentar salvar a sua plantação.

    Porém, uma das coisas que mais me chamou a atenção no filme, foi que Salma e a sofrida esposa do ministro, Mira (Rona Lipaz-Michael), se encontram. As cenas mostram que, apesar de estarem em situações distintas há entre elas uma certa identificação no que diz respeito à condição de mulher e de serem de certo modo oprimidas por aquele sistema machista. Na análise de Paulo Ricardo Kralik Angelini, "uma não pode falar o que sente; a outra nem é permitido sentir. Logo que se muda para a casa nova, a esposa vê no pomar uma espécie de oásis no meio de seu mundo solitário. Belas são as cenas em que ela observa as árvores balançando, os frutos maduros despencando no chão. Quase sentimos o perfume."

    Dois mil anos depois, na Palestina de Jesus, em que ouvimos falar do ódio existente entre judeus e palestinos, como seria bom se as pessoas pudessem romper o muro que as separa e conhecer de perto a realidade do outro?

    ResponderExcluir
  6. Eduardo,

    Boas as suas reflexões também.

    Creio que aquele episódio nos mostra bem o quão nobre pode ser o outro. E, quando passamos a ver nobreza no outro, percebemos nele uma dignidade que pode superar as ideias erradas que até então fazíamos do nosso semelhante.

    Fique à vontade para publicar o texto lá no Caminhos da Teologia. Hoje publiquei no blogue da Confraria aquele meu texto que fala da composição de uma "bíblia secular" para o Brasil.

    Abração!

    ResponderExcluir