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segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Em busca de uma simplicidade madura

Então, lhe trouxeram algumas crianças para que as tocasse, mas os discípulos os repreendiam. Jesus, porém, vendo isto, indignou-se e disse-lhes: Deixai vir a mim os pequeninos, não os embaraceis, porque dos tais é o reino de Deus. Em verdade vos digo: Quem não receber o reino de Deus como uma criança de maneira nenhuma entrará nele. Então, tomando-as nos braços e impondo-lhes as mãos, as abençoava.” (Marcos 10.13-16; ARA – conferir com Mt 19.13-15 e Lc 18.15-17)


Os ditos de Jesus que comparam as crianças com a procura pelo “Reino de Deus” podem ser considerados únicos em toda a Bíblia e distintos da literatura rabínica de sua época. Nem nas Escrituras hebraicas (o “Antigo Testamento”), e tão pouco no ensino de Paulo, as crianças alcançaram tamanha importância.

No entanto, as passagens dos Evangelhos que dão significação central às crianças costumam ser objeto de severas críticas por algumas pessoas. Segundo elas, estaria implícito nas palavras atribuídas a Jesus um tipo de "infantilismo existencial" ou "confiança cega", em que o novo convertido deve tornar-se "incapaz de questionar os absurdos cometidos pela religião".

Tal crítica é, em parte, considerável porque realmente a interpretação do texto acima citado admite uma construção doutrinária nesse sentido. E a passagem bíblica pode ser até mal intencionada e equivocadamente relacionada a Mateus 7.9-10 (ou a Lucas 11.11-12), quando Jesus fala da credulidade do homem em relação a Deus de que, se o filho pedisse pão, peixe ou ovo, o pai não lhe daria uma pedra, uma cobra ou um escorpião. Aliás, é inegável que, nesses séculos de história do cristianismo, inúmeros pregadores induziram seus ouvintes a praticarem suicídio intelectual com ameaças de que, se não acatassem as ordens eclesiásticas, ficariam de fora do “céu” após morrerem. E, movidos então pelo medo e por uma confiança cega no líder religioso, muitos devotos chegaram até a matar seus semelhantes acreditando estar acumulando créditos para uma futura entrada no Reino.

Acontece que a ideia de confiança cega não se firma quando empreendemos uma coerente análise sistemática das Escrituras, sendo uma concepção diametralmente oposta à passagem de Atos dos Apóstolos quando o texto bíblico nos mostra que os convertidos da sinagoga de Bereia verificaram se a pregação de Paulo e Silas estava mesmo correta:

Ora, estes de Bereia eram mais nobres que os de Tessalônica; pois receberam a palavra com toda a avidez, examinando as Escrituras todos os dias para ver se as coisas eram, de fato, assim. Com isso, muitos deles creram, mulheres gregas de alta posição e não poucos homens.” (At 17.11-12; ARA)

Por sua vez, em Mateus 13.52, Jesus exalta o escriba (pessoa instruída) que se tornou versado nos assuntos do Reino, o qual tira do seu tesouro “coisas novas e coisas velhas”. E a respeito da pequena parábola deste versículo, os comentários da Bíblia de Jerusalém nos fornece a seguinte orientação:

O doutor judeu que se tornou discípulo de Cristo, possui e administra toda a riqueza antiga, acrescida das perfeições da nova (v. 12). Esse elogio do 'escriba cristão' resume todo o ideal do evangelista Mateus e tem bem a aparência de ser a sua assinatura discreta. O v. convida os discípulos a ser também eles criadores de novas parábolas.

Refletindo melhor sobre a metáfora das crianças em relação ao Reino, cabe aqui a indagação se Jesus estava mesmo falando de “confiança cega” conforme muitos seguidores e críticos do cristianismo ainda pensam? Por acaso a criança não é altamente questionadora a ponto de formular perguntas bem espontâneas sem nenhum medo de expor suas dúvidas?

Lembro que eu, quando ainda era criança, fazia constantes perguntas aos meus pais sobre a origem de Deus. Queria entender por que Deus sempre existiu e o que poderia ter existido antes Dele. E, quando me falavam sobre o dogma católico da “Santíssima Trindade” eu não me conformava em simplesmente aceitar como resposta ser um mistério indecifrável pelo homem a afirmação de que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são Um. Pois, se algo não fazia sentido pra mim, eu queria encontrar respostas, de modo que só interrompi minhas buscas pessoas depois que fui doutrinado pelo cristianismo e psicologicamente coagido com ameaças indiretas sobre o “inferno”, “purgatório” ou “excomunhão”.

Mas voltando à passagem bíblica inicial, o que observo na comparação entre o Reino de Deus e as crianças é um louvor de Jesus à simplicidade e à retidão de caráter dos pequeninos. Isto porque eles não se apegam a orgulhosas posições, são incapazes de guardar rancores mesmo contrariados, pedem desculpas facilmente pelo erro cometido, não se envergonham de ser quem realmente são e se mostram bem mais dispostos a aprender do que nós adultos conformados.

Estudando o Evangelho não canônico de Tomé, encontrei duas passagens que ampliam a metáfora do Reino aplicada às crianças. Uma delas seria esta sentença que é considerada um possível paradigma de Mc 10.15, Lc 18.17 e Mt 18.3-4: “Esses pequeninos que mamam são como aqueles que entram no Reino” (To 22a).

Em outro dito, no mesmo evangelho tido erroneamente como “apócrifo”, Jesus relaciona as crianças ao Reino pela pureza interior delas (To 46b). E o que melhor me esclarece sobre qual seria o entendimento do Senhor seria a sentença de To 4a: “O homem idoso não hesitará em perguntar a uma criancinha de sete dias sobre o lugar da vida, e ele viverá”.

Ora, meditando nesta passagem do Evangelho de Tomé, juntamente com a ideia do “novo nascimento” de João 3, podemos perceber que o infante experimenta o Reino melhor do que muitos de nós que temos consciência do certo e do errado, vos que nos preocupamos excessivamente com o amanhã, o destino da alma depois da morte, o futuro dos descendentes, etc. Para a criança de peito existe apenas o aqui e agora, pois ela se deleita intensamente com cada momento, não se restringindo com moralismos ou juízos de aparência. Tais bebês simplesmente vivem adorando a Deus em espírito e em verdade.

Ao comentar sobre a relação entre o Reino e as crianças, Ron Miller, ex-padre católico e atualmente professor da Universidade Lake Forest (Illinois, EUA), assim nos ensina compartilhando uma experiência pessoal:

"(...) Jesus desenvolveu um diferente conceito dos Céus – a ideia de um Deus que fornece a compaixão, o perdão e o paraíso celeste -, o qual vem a ser a mensagem principal deste Evangelho [de Tomé] e do Novo Testamento. E dentro deste contexto, somente um ser imaculado, puro como uma criança, poderia entender os segredos do paraíso celeste. Você deve estar pensando: por que ser como uma criança? Na verdade, um infante possui tão pouca experiência que as formas negativas da mente e do coração ainda não criaram nenhum obstáculo em sua percepção do mundo. Recentemente, um casal de alunos na universidade onde leciono levou seu filho de dois anos para que eu o conhecesse. O pequeno garoto adentrou correndo a sala de aula e, repentinamente, parou no meio de todos os alunos. Maravilhado, olhou todos os objetos à sua volta, inclusive cada pessoa detalhadamente. O que eu daria para ter visto o que ele viu naquele momento, pois tinha o semblante de quem olhou para o paraíso (...)" (O Evangelho de Tomé: uma bússola para a evolução espiritual; tradução de Claudinei dos Santos; revisão técnica Hermínio Figueiredo. Rio de Janeiro: Nova Era, 2006, págs. 34 e 35)

Outra característica marcante nos pequeninos é o desapego. Na sentença 21a do Evangelho de Tomé, aos responder uma pergunta de Maria sobre a quem se assemelhariam os seus seguidores, Jesus compara os discípulos a crianças que brincam num campo alheio e que, quando os donos do terreno as expulsam, elas simplesmente deixam a propriedade de maneira pacífica:

Eles se parecem com crianças que se instalam num campo que não lhes pertence. Quando os donos do campo vierem, dirão: 'Entregai nosso campo.' Elas se despirão diante deles para que eles possam receber o campo de volta e para entregá-lo a eles.” (To 21a)

O que podemos aprender de novo com esta rica passagem de um livro que poderia muito bem constar no cânon das nossas bíblias?

Ao refletir sobre este dito atribuído a Jesus, percebo que a criança possui a notável característica de reconhecer intuitivamente a nossa condição de peregrinos neste planeta chamado Terra. O pequenino não pretende ser dono de nada, mas tão somente obter alegria e diversão. Por isto, quando os proprietários do imóvel solicitam que as crianças deixem o terreno, elas espontaneamente dão “a outra face” do célebre Sermão da Montanha, deixando o local como também as próprias vestes, mostrando que não têm o interesse de serem donas do Éden, mas tão somente atuarem como jardineiros, despidas de qualquer materialidade.

Para bem ilustrar através de acontecimentos contemporâneos o que vem a ser o desapego, faço menção a Mahatma Gandhi (1869-1948), o principal líder da independência indiana. Mesmo sendo um hindu, Gandhi deu um grande exemplo de vida aos cristãos do Ocidente. Graças ao seu desprendimento, ele pôde levar adiante seu audacioso projeto libertador, abalando o poderoso Império Britânico.

Vestindo roupas rústicas, a “Grande Alma” carregava seus pertences num pequeno saco e se apoiava sobre uma vara de bambu para locomover-se. Tendo se formado em Direito e exercido a advocacia em Londres, ele abriu mão do conforto e das riquezas. Assim, despido praticamente de todos os bens e livre da preocupação de gerir um patrimônio, Gandhi pôde então cumprir a agenda de seu itinerante ministério revolucionário porque sua bagagem tornou-se tão leve quanto a de uma criança.

É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus.” (Marcos 10.25; ARA)

Igualmente nós, sem imitarmos os hábitos pessoais bizarros de Gandhi, também devemos aprender a aliviar nossa bagagem. Tanto no aspecto material quanto no emocional e no espiritual. Pois, se “morremos com Cristo” e “nascemos de novo”, conforme nos ensinam as Escrituras, não temos mais que nos preocupar tanto com a cobrança de contas ou morais. Não somos obrigados a aparentar nada para sermos aprovados pelas pessoas. Estamos livres pela graça divina de toda e qualquer condenação, bem como de prisões cármicas, penitências, sacrifícios, sentimentos de culpa pelos erros do passado, etc. E basta apenas atuarmos responsavelmente pela realização deste bimilenar ideal de Cristo – a construção do Reino de Deus.

E que venha a nós o Reino do Eterno! O Senhor nosso Deus é um! Aleluia!


OBS: A foto acima refere-se aos tempos de minha infância, provavelmente entre o final dos anos 70 e começo da década de 80. As citações do Evangelho de Tomé foram extraídas da seguinte página na internet http://www.igrejavaroesdeguerra.com.br/LIVROS/Apocrifo_Evangelho_Tome.pdf

sábado, 24 de setembro de 2011

Como evitaremos a banalização do instituto do dano moral?

"é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito á indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação." (Constituição da República Federativa do Brasil, incisos V e X do art. 5°)


Desde a Antiguidade, o dano moral já era percebido nas leis das diversas civilizações que contribuíram para a formação da sociedade ocidental.

Por volta do segundo milênio antes da era cristã, num período anterior ao próprio Direito romano, o Código de Hamurábi já disciplinava algumas situações na Mesopotâmia em que o dano de natureza moral poderia ser reparado pecuniariamente. Apesar da predominância do preceito “olho por olho e dente por dente” da lei de talião, que expressava o direito da vingança da vítima para retribuir na mesma proporção o dano causado, havia casos especiais em que a imposição de uma pena econômica constituía uma outra forma quase que alternativa de se proporcionar à vítima uma satisfação compensatória em pagamento de “ciclos de prata”, excluindo-se a vindita.

Há quem diga que as lei sumerianas, como o Código de Ur-Nammu (três séculos mais antigo que o de Hamurábi), previa um número maior de fatos em que o direito da vindita já teria sido substituído pela reparação compensatória, através de uma compensação pecuniária:

"O Código de Ur-Nammu (...) foi descoberto somente em 1952, pelo assiriólogo e professor da Universidade da Pensilvânia, Samuel Noah Kromer. Nesse Código elaborado no mais remoto dos tempos da civilização humana é possível identificar em seu conteúdo dispositivos diversos que adotavam o princípio da reparabilidade dos atualmente chamados danos morais." (Américo Luís Martins da Silva. O dano moral e a sua reparação civil. São Paulo: RT, 1999, p. 65)

No entanto, para Wilson Melo da Silva, as leis antigas da Mesopotâmia, bem como o Código de Manu, na Índia, não tiveram “a manifesta intenção de se referirem, nesta parte, de modo positivo e expresso ao dano moral” (O dano e a sua reparação. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 12)

Embora não tivesse dispensado a regra do Talião, a Torá judaica também adotou algumas soluções quanto à reparação por danos morais, conforme se observa neste texto de Deuteronômio em que a vítima sofre uma indiscutível humilhação:

"Se um homem desposar uma mulher e, depois de coabitar com ela, a aborrecer, e lhe imputar delitos vergonhosos, e contra ela divulgar má fama, dizendo: Tomei esta mulher, e me cheguei a ela, porém não a achei virgem, os pais da moça tomarão as provas da virgindade dela, e as levarão aos anciãos da cidade, à porta. O pai da moça dirá aos anciãos: Dei minha filha por mulher a este homem, porém ele a aborreceu, e lhe imputou delitos vergonhosos dizendo: Não achei tua filha virgem. Então os pais estenderão a roupa dela diante dos anciãos da cidade, os quais tomarão aquele homem e o castigarão. Condená-lo-ão em cem ciclos de prata, e o entregarão ao pai da moça, porque divulgou má fama sobre uma virgem de Israel. Ela continuará a ser sua mulher e ele não poderá ,andá-la embora enquanto viver." (Dt 22.13-19)

Entre os gregos, desde os tempos homéricos, a compensação financeira por danos morais constituía-se como uma tradição. As normas instituídas pelo Estado aboliram o direito de vingança e determinavam que a reparação do dano poderia ser de natureza pecuniária.

No estudo do antigo Direito Romano, alguns renomados autores jurídicos internacionais como Rudolf von Ihering, e entre nós Pedro Lessa, notaram entre as instituições havidas naquele tempo algo de originário para questão da história do dano moral. Teria sido na actio injuriarum aestimatoria, na criação do direito pretoriano, que o injuriado tinha a faculdade de pleitear perante o magistrado uma certa soma em satisfação das injúrias sofridas, ficando, entretanto, livre o juiz decidir se o pedido era justo e equitativo. Para injúrias especiais, existia a lei cornélia, que assim ditava: ‘pulsatum, verberatumae suam vi introitum’. A actio injuriarum era destinada pelo pretor para atingir, então, duas funções, uma material e outra ideal, e ambas foram reconhecidas por quase todos os pandectistas. E ainda que se atribuísse uma natureza penal a tal ação, não se poderia negar o conceito de tutela jurídica de danos não patrimoniais.

Mesmo após a queda do Império Romano, os procedimentos da ação pretoriana repercutiram por muitos séculos, influenciando, inclusive, as Ordenações do Reino de Portugal.

A Idade Média foi marcada pela adoção do então Direito canônico, o qual teve larga influência no território brasileiro e nas Ordenações Filipinas em virtude da força da religião católica na época. Embora mantivesse procedimentos oriundos do Direito romano, o Código Canônico foi valorado conforme os dogmas da Igreja Católica e estabelecia sansões de ordem material e espiritual para determinadas condutas.

No Código Filipino, em relação à estimativa do próprio dano subjetivo, verifica-se indícios da adoção parcial do procedimento romano na parte que especificamente diz respeito ao chamado “valor de afeição”. Nas Ordenações do Reino de Portugal, a estimativa recebia o mesmo tratamento, com a diferença que, nesta, para a credibilidade da palavra do ofendido ao fixar seu próprio dano, era necessário que se fizesse o “juramento de praxe sobre os Santos Evangelhos.”

Até a vigência do Código Civil brasileiro de 1916 (Lei n.º 3.071), vigorava o instituto dos esponsais, onde se previa que a recusa do noivo em se casar, sem um justo motivo, importaria na sua condenação em perdas e danos.

Apesar das conquistas humanistas trazidas pela Revolução Francesa, muitas das legislações civis modernas não contemplaram expressamente o instituto do dano moral e diversos foram os entendimentos jurisprudenciais e doutrinários sobre a sua aplicação. O Código Civil de Napoleão Bonaparte não delineou de forma expressa os limites da reparabilidade do dano moral. O seu artigo 1.382 apenas estabeleceu que o causador do dano tem a obrigação de repará-lo, desde que configurada a sua culpabilidade, passando uma noção bem ampla do instituto que tanto poderia abranger as lesões de ordem material ou não patrimonial. Ficava assim, ao critério do intérprete da lei dizer se o dommage poderia ou não ser empregado em seu sentido lato, devendo se registrar que houve um acolhimento favorável em inúmeras hipóteses pelos tribunais franceses no decorrer da história contemporânea.

Tal como o Código napoleônico, o artigo 1.151 do Código Civil italiano, de 1865, adotou texto semelhante. Porém, a princípio, os juízes reduziam os casos de reparação por danos morais a um número bem insignificante e muitos eram os doutrinadores que negavam a reparabilidade. E, somente quando passou a vigorar o Código Penal de 1930, cujo artigo 185 assegurava a reparação à vítima por todo crime praticado contra ela ou sua família, começou a prevalecer o entendimento de que ambos os dispositivos das leis civil e criminal deveriam ser interpretados em conjunto, ainda que o fato tenha sido um ilícito civil.

Da mesma maneira, o Código Civil espanhol de 1890, em vigor até hoje, repetiu a disposição contida no Código Civil francês. Porém, ao contrário do que ocorreu na França, o dano não foi interpretado abrangentemente. A jurisprudência e a doutrina espanhola entendiam que o artigo 1.902 da Lei Civil se referia tão somente ao dano patrimonial, entendendo não ser valorável a honra. E, por longos anos, os Tribunais não souberam fazer a exata distinção entre os danos materiais e morais.

Em 1900, com o surgimento do B.G.B. – Burgerliches Getsetzbuch, ou Código Civil alemão, foi criado um novo sistema de reparação por danos morais, em que a condenação do réu só poderia ser admitida dentro das hipóteses taxativamente enumeradas em lei (parágrafo 253 do Código). As situações em que o Código Civil alemão determina a compensação por danos morais em dinheiro estão previstas taxativamente nos seus parágrafos 847 e 1.300. (Hans Albrecht Fischer. Reparação dos danos no direito civil. Tradução de Antônio Arruda Férrer Correia. São Paulo: Saraiva, 1938)

Em outras legislações estrangeiras que não influenciaram tanto o nosso ordenamento jurídico, a compensação por lesões imateriais é condicionada à configuração da redução patrimonial da vítima. O direito de alguns países, como a Rússia e a Hungria, por influência do marxismo-leninismo que marcou o período comunista da ex-URSS, não admitem a indenização por danos morais. E, neste sentido assim salienta Yussef Said Cahali:

"No direito soviético exclui-se totalmente a indenização do dano moral, pois na opinião de Cherchevevich, a transformação do prejuízo moral é resultado do espírito burguês que avalia tudo em dinheiro, a considerar que tudo pode ser vendido." (Dano moral. 2ª. ed. Ver., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2000, p. 32)

Já o direito anglo-americano, em razão do particularíssimo sistema que se distingue dos países de direito codificado, os casos concretos decididos pelos tribunais vão compondo teorias que se tornam aplicáveis a futuras situações idênticas e passam a servir de fundamento analógico para questões semelhantes. Sabe-se que, nos Estados Unidos e na Inglaterra, o campo de incidência do dano moral tem sido bem amplo.

Na realidade, e segundo se evidencia do diversificado das legislações contemporâneas, o princípio da reparabilidade do dano moral reveste-se de um cunho marcadamente ideológico e político. Assim, para saber se o direito deve limitar a sua pretensão a proteger os interesses patrimoniais, ou se deve conceder certas compensações àqueles que sofrem na própria carne ou são molestados em seus sentimentos, a resposta a ser dada depende de numerosas considerações tanto de ordem ideológica como econômica, o que explica a evolução pela qual tem passado os direitos positivos.

Na fase da legislação pré-codificada, a doutrina jurídica pátria já se confrontava sobre a reparabilidade do dano moral. As Ordenações Filipinas já previam uma reparação pecuniária pela sedução de mulher virgem (Título XXIII do Livro V), caso o homem não se casasse com ela. O Título XXXVIII do Livro III prescrevia que, em hipótese de demanda por dívida já paga, deveria ser procedida a restituição em dobro do valor recebido.

O nosso Código Criminal de 1830 dispunha que a indenização seria sempre a mais completa possível, mas sem fazer nenhuma alusão à reparação do dano moral. Tal dispositivo foi depois reproduzido pelo artigo 800 da Consolidação das Leis Civis de Augusto Teixeira de Freitas, o qual definia o dano como “o mal, que resultar à pessoa e aos bens do ofendido” (art. 801) que deveria ser avaliado por árbitros em toda a sua extensão.
Aliás, o próprio Augusto Teixeira de Freitas explicou que:

"O mal à pessoa, e seus bens, ou quaisquer delitos, avaliado em todas as suas partes, e consequências, fora redutível sem inconveniente ao que se chama prestação – de perdas e danos, perdas e interesses, lucros cessantes e danos emergentes; e que vem a ser, o que efetivamente perdeu-se, e o que se deixou de ganhar. Estas expressões, entretanto, é de uso aplicarem-se unicamente às faltas dos devedores por obrigações não-derivadas de delitos puníveis pelas leis criminais." (Consolidação das Leis Civis. 3ª. ed. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1876, p. 486)

Ao se reproduzir as situações reparáveis por danos morais previstas nas Ordenações Filipinas, bem como ter prescrito outros casos indenizáveis de lesões não patrimoniais, pode-se dizer que havia indícios de regulamentação do dano moral na Consolidação.

O Código Penal brasileiro de 1890, em seu artigo 276, por sua vez, tratou de assegurar expressamente, “prestação pecuniária satisfatória de dano moral, nos casos de atentado contra a honra da mulher” e determinava, em seu artigo 70, que, nos demais casos a indenização, fosse regulada pelo Direito Civil. Entretanto, muita polêmica foi levantada quanto à reparação prevista nesta lei, encarada incompreensivelmente como medida “iníqua, altamente indecorosa e desmoralizadora”.

O artigo 21 caput da Lei n.º 2.681, de 07/12/1912, que regula a responsabilidade civil nas estradas de ferro, dispõe que, “no caso de lesão corpórea ou deformidade”, além das perdas e danos, das despesas do tratamento da vítima e dos lucros cessantes, o juiz deve arbitrar “uma indenização conveniente”.

Segundo Romão Côrtes de Lacerda, o artigo 21 da Lei n.º 2.681/12 referia-se à dor de natureza moral, sem reflexos patrimoniais
Entretanto, a reparabilidade por danos morais, mesmo depois da vigoração do Código Civil de 1916, só era reconhecida nos casos de acidentes ferroviários. Então, quando decidia questões relativas a esses fatos, o STF não fundamentava suas decisões no artigo 1.538 do Código Civil e sim no artigo 21 caput da Lei n.º 2.681/12, negando aos familiares das vítimas a indenização por danos morais, conforme explica Américo Luís Martins:

"No período que antecedeu a vigência do Código civil brasileiro, ou se negava a reparabilidade do dano moral ou se considerava indenizável o dano moral apenas quando afetava o patrimônio da vítima empobrecendo-a (...) Todavia, se havia um substancial número de opositores da reparabilidade do dano moral que causasse prejuízos patrimoniais, por outro lado, também, naquela época havia os defensores de tal reparação."

O Código Civil de 1916 não fez nenhuma menção de forma expressa à reparação por danos morais. Os doutrinadores favoráveis à tese fundamentavam-se no artigo 76 da lei, o qual prescrevia que para propor, ou contestar uma ação, é necessário ter legítimo interesse econômico ou moral. E o seu parágrafo único dispunha que “o interesse moral só autoriza a ação quando toque diretamente ao autor ou à sua família”. Porém, prevaleceu no meio jurídico pátrio o entendimento contrário à reparação dos danos morais.

Assim, por longos anos a nossa jurisprudência adotou uma interpretação restritiva do Código Civil em matéria de reparação por dano moral. Em alguns acórdãos o Supremo Tribunal Federal considerava não ser indenizável o valor afetivo exclusivo. Em outras decisões, o artigo 76 da Lei Civil era considerado como norma de natureza meramente processual. Em outros julgamentos, o dano moral só se tornaria indenizável se a lesão produzisse reflexos patrimoniais para o ofendido.

Todavia, a nova realidade social se impunha e, devido aos insistentes reclamos doutrinários, os tribunais foram paulatinamente renovando os seus entendimentos a fim de acompanharem as contingências da vida moderna. Houve então uma gradativa ampliação do conceito de dano moral indenizável, o que, a princípio, se verificou na valoração do dano material até se chegar à indubitável compreensão em favor da reparabilidade.

O Código Brasileiro de Telecomunicações marcou esse novo período de evolução do princípio da reparabilidade do dano moral. A Lei n.º 4.117/62 tratava expressamente da regulamentação dos danos morais indiretos ou dos reflexos patrimoniais dos danos não-econômicos. Os seus artigos 81 a 88 dispunham sobre o dano moral relativo às ofensas experimentadas por alguém em virtude de calúnia, difamação ou injúria, veiculadas por radiodifusão, ampliando, inclusive, as hipóteses de reparabilidade. Tais dispositivos, porém, vigoraram até a edição do Decreto-lei n.º 236/67 que, através de seu artigo 3º, revogou os artigos 58 a99 da referida lei.

Ainda durante a década de 60 foram aprovados o Código Eleitoral (Lei n.º 4.737, de 15/07/1965) e a Lei de Imprensa (lei n.º 5.250, de 09/02/1967), que tratavam expressamente da indenização por danos morais igualmente nos casos de calúnia, injúria e difamação.

Para Américo Luís Martins da Silva, a Lei n.º 5.250/67 trouxe alguns avanços em relação ao Código Brasileiro de Telecomunicações, ao tratar da reparabilidade dos danos morais de maneira mais profunda, procurando regulamentar a questão com um grau de acerto maior. A partir dali, deixou-se para trás, pelo menos no que concerne ao exercício da liberdade de manifestação do pensamento, o insistente e equivocado posicionamento jurisprudencial da primeira metade do século XX, ignorando-se o avanço das legislações estrangeiras e o avanço da própria doutrina e jurisprudência brasileira.

Ocorrida em dezembro de 1965, no extinto Estado da Guanabara, a III Conferência Nacional de Desembargadores veio demonstrar as novas inclinações da magistratura brasileira para adaptar o Direito à realidade social quanto ao princípio da reparabilidade do dano moral, tornando-se um marco importante na evolução jurisprudencial. Passou-se então a considerar que o dano moral deveria ser ressarcido também nas hipóteses em que não ocorresse nenhuma lesão patrimonial à vítima, somando inúmeras divergências existentes até então.

Com a promulgação da Constituição da República de 1988, foi definitivamente finalizada qualquer dúvida remanescente a respeito da reparabilidade pelo dano moral. O artigo 5º da Carta Magna, em seus incisos V e X, estatuiu a indenização pelo dano moral como sendo uma garantia dos direitos individuais. Procurou o constituinte distinguir de maneira expressa as indenizações pelos danos material, moral e à imagem, não obstando a cumulatividade desses direitos, mesmo havendo também o exercício do direito de resposta. O dano moral, mais do que nunca, tornou-se inconfundível com o dano de natureza patrimonial e tal distinção obrigou tanto a doutrina como a jurisprudência a identificar o que vem a ser o referido dano à imagem.

Segundo Maria Helena Diniz, o dano à imagem seria um bem jurídico autônomo das pessoas físicas e jurídicas que se distingue do dano moral. E tanto a reprodução não consentida da imagem, quanto o uso indevido, mesmo que autorizado, podem dar ensejo à uma indenização. Ou seja, tanto a divulgação pública de um retrato sem o consentimento do fotografado como a sua modificação através de recursos de um computador são condutas ilícitas que podem gerar o dever de reparar o dano.

Sobre o inciso X do artigo 5º da CRFB/88, estabelece o texto constitucional que: "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente da sal violação". Todos os direitos individuais mencionados pela Lei maior, isto é, a intimidade, a vida privada, a honra e a integridade da imagem pessoal tornaram-se hipóteses indenizáveis em caso de violação, independentemente de ter havido prejuízo patrimonial para a vítima.

Dentro do espírito da Carta Magna, novas leis foram sendo aprovadas, reforçando a reparabilidade pelos danos morais, conforme nos mostra Clayton Reys:

"Inúmeras legislações vêm sendo editadas no País, ampliando o leque de opções para a propositura de ações nesta área. É o caso do Código de Proteção ao Consumidor (lei n.º 8.078, de 11.09.1990) que, em seu artigo 6º, incisos VI e VII admitiu a reparação de danos patrimoniais e morais. No mesmo sentido filiou-se a Lei n.º 8.069, de 13.07.1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), que em seu art. 17, combinado com o art. 201, V, VIII e IX, assegurou à criança e ao adolescente o direito à integridade física, psíquica e moral. Portanto, a partir do momento em que a lei assegura o direito à integridade física e moral do menor, admite a reparação de eventual dano à sua imagem ou aos seus bens extrapatrimoniais." (Dano moral. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 72)

Pode-se dizer que o Código de Defesa do Consumidor veio, portanto, regulamentar e ampliar as hipóteses de danos morais indenizáveis. Segundo o item VI do artigo 6º da Lei n.º 8.078/90, constitui como direito básico do consumidor “a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos”. E, justamente para tornar efetiva a reparabilidade, o mesmo artigo 6º, em seu inciso VII, também constitui como direito básico do consumidor “o acesso aos órgãos judiciários e administrativos, com vistas à prevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos ou difusos, assegurada a proteção jurídica, administrativa e técnica aos necessitados”.

O artigo 25 caput do CDC afastou a cláusula de não indenizar dos contratos envolvendo questões de consumo, tornando cabível, em qualquer hipótese, a obrigação do fornecedor em compensar o dano moral causado ao consumidor, ainda que se convencione o contrário entre as partes. Os efeitos da responsabilidade do fornecedor são ampliados pela regra contida no artigo 7º, parágrafo único e repetida pelo artigo 25, parágrafo 1º, ambos do CDC. Pois se o dano for causado por mais de um fornecedor, todos responderão solidariamente pelo dever de reparar.

Uma outra hipótese é o que dispõe o artigo 22 caput e parágrafo único do CDC. A prestação do serviço público deve ser fornecida de maneira adequada, eficiente, segura e, quanto aos essenciais, ser também contínua. Havendo descumprimento, total ou parcial dessas obrigações, as pessoas jurídicas serão compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, incluindo-se aí os danos morais.

Finalmente, com o advento do novo Código Civil de 2002, o dano moral veio a ser mais uma vez confirmado no ordenamento jurídico brasileiro. O artigo 186 da Lei n.º 10.406/02 faz uma referência através da expressão “exclusivamente moral”. Já os artigos 953 e 954 da lei falam da reparabilidade por dano moral respectivamente nos casos de ofensa à honra e à liberdade pessoal da vítima. E o legislador estabelece nos artigos 939 e 940 as penas a serem aplicadas nas hipóteses de demanda indevida pela cobrança de dívidas, além de manter outras disposições expressas do Código antigo.

Segundo Sérgio Cavalieri Filho, em tema de dano moral a questão que se coloca atualmente não é mais a de saber se ele é ou não indenizável, nem ainda, se pode ou não ser cumulado com o dano material, mas sim o que vem a ser o próprio dano moral. Esse é o ponto de vista de partida para o equacionamento de todas as questões relacionadas com o dano moral, inclusive quanto à sua valoração.

Inúmeros são hoje os conceitos sobre a definição do dano moral, sendo também várias as posições da doutrina e da jurisprudência a respeito da sua configuração. Pode-se falar no conceito negativo, em que o dano moral seria qualquer sofrimento de caráter não-patrimonial. Ou então se buscar uma definição positiva em que o dano moral seria a lesão de um bem integrante da personalidade do indivíduo. Isto é, a violação de um bem personalíssimo tal como a honra, a liberdade, a saúde, a integridade psicológica, a privacidade, a imagem, o nome, etc.

Na atualidade, busca-se tutelar o interesse da pessoa humana, a fim de que os bens jurídicos integrantes da personalidade, mais preciosos do que o próprio patrimônio, sejam resguardados. Seria a defesa da dignidade, consagrada no inciso III do primeiro artigo da Constituição da República.

Entretanto, há quem critique que a reparabilidade por dano moral estaria hoje se transformando em uma indústria capaz de levar o instituto à uma vulgarização. Principalmente nas relações de consumo em que inúmeros são os casos levados ao conhecimento do Judiciário cotidianamente e, muitas das vezes, sem nenhuma plausividade jurídica capaz de justificar as pretensões apresentadas. Os tribunais são cada vez mais abarrotados por ações indenizatórias fundadas nos motivos mais esdrúxulos possíveis.

Em meio às novas tensões sociais geradas pela reparabilidade do dano moral, tem prevalecido o bom senso nos posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais. Um dos critérios para a configuração do dano moral baseia-se na demonstração de suas consequências, tais como dor, vexame, tristeza, sofrimento e humilhação, que sejam capazes de comprovar a agressão à dignidade de alguém. Trata-se da prova do dano que, independentemente da inversão do ônus da prova, assegurada pelo artigo 6º, inciso VIII, do CDC, deve ser ao menos exposta pela vítima, tanto na petição inicial quanto em seu depoimento pessoal durante o momento da audiência de instrução.

Carlos Roberto Gonçalves, em sua obra “Comentários ao Código Civil”, sustenta que a apuração do dano moral deve se restringir aos princípios da Constituição da República.

No tocante aos bens lesados e à configuração do dano moral, malgrado os autores em geral entendem que a enumeração das hipóteses previstas na Constituição Federal, seja meramente exemplificativa, não deve o julgador afastar-se das diretrizes nela traçadas, sob pena de considerar dano moral pequenos incômodos e desprazeres que todos devem suportar na sociedade em que vivemos. Desse modo, os contornos e a extensão do dano moral devem ser buscados na própria Constituição, ou seja, no art. 5º, n.º V (que assegura o “direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”) e n.º X (que declara invioláveis “a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas”) e, especialmente, no art. 1º, n.º III, que erigiu à categoria de Estado Democrático “a dignidade da pessoa humana”.

O transtorno causado por fatos da relação de consumo precisa fugir à normalidade do dia a dia do homem médio, capaz de lhe causar a ruptura em seu equilíbrio emocional, interferindo profundamente em seu bem estar.
Nesse sentido, assim entendeu o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro:

"Responsabilidade Civil. Dano Material e Moral. O dano moral se caracteriza pela humilhação ou sofrimento intenso porque passa uma pessoa, vexame, a dor que, fugindo a normalidade das coisas, vem a interferir de modo intenso no comportamento psicológico do indivíduo, acarretando angústias, aflições e desequilíbrio no seu bem estar cotidiano. Aborrecimentos momentâneos que a vida moderna causa a todos que habitam os grandes centros, angústias pelo fato de os serviços públicos não funcionarem, somente em caráter excepcional é que podem dar como causa a indenização fundada em dano moral. Não caracterização do dano moral." (Ap. 3327/97 – Reg. 24/04/98, 1ª. C. Cív. TJRJ, unânime, Rel. Paulo Sérgio Fabião)

Por sua vez, o desembargador gaúcho Décio Antônio Erpen, ao relatar a Apelação Cível no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul assim argumenta:

"A prevalecer a tese de sempre que houver mora, ou qualquer contratempo num contrato, haveria o dano moral respectivo, estaríamos gerando uma verdadeira indústria dessas ações. Em breve teríamos um tribunal especializado, talvez Tribunal do Dano Moral. A vida vai ser insuportável. (...) O Direito existe para viabilizar a vida – a e vingar a tese generosa do dano moral, sempre que houver um contratempo vai culminar em truncá-la, mercê de uma criação artificiosa. Num acidente de trânsito haverá dano material sempre seguido de dano moral. No atraso de voo haverá a tarifa mas o dano moral será maior. Nessa nave de o dano moral estar presente em quase todas as relações humanas não pretendo embarcar. Vamos atingir os namoros desfeitos, as separações de casais, os atrasos nos pagamentos. Ou seja, a vida a serviço dos profissionais de direito. Se a segurança jurídica também é o valor supremo do Direito, devemos por em prática mecanismos tal qual simplifique a vida sem se estar gerando um estado generalizado de neurose do suspense." (Apelação Cível n.º 596.185-181)

E, no mesmo sentido, desta maneira decidiu a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial n.º 215666/RJ, de que foi o relator o Ministro César Asfor Rocha:

"CIVIL. DANO MORAL. NÃO OCORRÊNCIA. O mero dissabor não pode ser alçado ao patamar do dano moral, mas somente aquela agressão que exacerba a naturalidade dos fatos da vida, causando fundadas aflições ou angústias no espírito de quem ela se dirige. Recurso parcialmente provido."

Enquanto o século XIX foi o século das grandes codificações, o século XX por muitos doutrinadores é visto como a era dos “novos direitos”, entre os quais se insere o direito do consumidor. Frutos das grandes transformações sociais decorrentes do desenvolvimento científico-tecnológico, principalmente no pós-guerra, os novos direitos representam a atualização do ordenamento jurídico, uma vez que os Códigos não foram capazes de acompanhar o dinamismo dessa evolução.

Os novos mecanismos de fabricação e distribuição de mercadorias, baseados na produção em massa, para suprimento das demandas decorrentes da grande explosão demográfica do século passado, deram ensejo ao surgimento de novos instrumentos jurídicos nas relações de consumo. Diversas práticas abusivas cometidas pelos fornecedores configuravam verdadeiras injustiças, as quais não estavam sendo mais disciplinadas pelo direito material tradicional, que se tornou ineficaz de prestar uma efetiva proteção ao consumidor. Segundo o civilista português João Calvão da Silva, o “ideário liberal individualista era hostil ao consumidor; erguia-se como verdadeiro dique à proteção dos seus interesses”. (apud CAVALIERI FILHO, Programa de Responsabilidade Civil. 4ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 461)

Dentro deste contexto, buscou o legislador, através da Seção IV do Capítulo V do Código de Defesa do Consumidor, prever exemplificativamente como prática abusiva uma série de comportamentos que abusam da boa fé do consumidor e de sua condição de hipossuficiência técnica, econômica e jurídica, considerando-as como ilícitos, independentemente da ocorrência de algum dano ou da existência de uma relação contratual.

No entanto, durante a fase em que o projeto do CDC passou pelo seu processo legislativo, a sanção que era prevista no artigo 45 foi estranhamente barrada pelo veto presidencial, não restando assim para o consumidor outra solução além da obtenção de uma sentença favorável em uma ação de obrigação de fazer (ou de não fazer), ser indenizado na forma do artigo 6º, inciso VII (desde que ocorra o dano), ou requerer a desconsideração da personalidade jurídica (art. 28). O texto do dispositivo vetado por Fernando Collor assim dizia:

Art. 45 (vetado) - As infrações ao disposto neste Capítulo, além de perdas e danos, indenização por danos morais, perda dos juros e outras sanções cabíveis, ficam sujeitas à multa de natureza civil, proporcional à gravidade da infração, cominada pelo juiz na ação proposta por qualquer dos legitimados à defesa do consumidor em juízo.

A ideia de se criar uma pena civil para reprimir as práticas abusivas nas relações de consumo foi sem dúvida louvável. Porém, algumas críticas podem ser feitas à esta proposta original do projeto de lei. Uma delas é que deixar a fixação da multa ao arbítrio do juiz não somente obrigaria a parte a ajuizar a demanda, desprezando a esfera administrativa, como deixaria a sua valoração ao exclusivo critério do magistrado, sem que houvesse nenhum direcionamento normativo no tocante à quantificação.

Para cada tipo de ato ilícito praticado nas relações de consumo deve haver, sempre que possível, uma multa específica ao fornecedor. Os limites devem ser previamente delineados pela norma, fixando os valores máximos e mínimos que poderão ser aplicados, ou do contrário haverá uma grande instabilidade jurídica na sociedade. Tal como a regra do parágrafo único do artigo 42 do CDC já existente, outros ilícitos abusivos, mesmo os que não estão especificados entre os incisos do art. 39, podem e devem ser apenados pelo normatizador.

A sanção imposta pelo artigo 42, parágrafo único do Código de Defesa do Consumidor possui traços de semelhança com a regra do artigo 940 do Código Civil (correspondente ao artigo 1.531 do Código Civil de 1916), apesar de apresentar alguns diferenças. Trata-se, porém, de um dispositivo que foi oportunamente elaborado pelo legislador a fim de disciplinar a cobrança de dívidas extrajudiciais nas relações de consumo. Conforme a lição de Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin, um dos autores do anteprojeto do CDC, a pena dispositivo em questão consiste nisto:

A pena do art. 42, parágrafo único, rege-se por três pressupostos objetivos e um subjetivo (= “engano justificável”). No plano objetivo, a multa civil só é possível nos casos de cobrança de dívida; além disso, a cobrança deve ser extrajudicial; finalmente deve ela ter por origem uma dívida de consumo. Sem que estejam presentes esses três pressupostos, aplica-se, no que couber, o sistema geral do Código Civil. (GRINOVER et. Al., Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 7ª. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, pp. 394 e 395)

Sendo, porém, o débito indevido cobrado através de ação judicial, aplica-se o disposto no artigo 940 do CC. A sanção da lei especial só encontra cabimento quando o fornecedor direta ou indiretamente cobrar e receber, através dos meios extrajudiciais, a importância considerada como indevida. Além disso, é preciso que o fornecedor venha a agir com dolo ou culpa para ser penalizado ao pagamento do indébito em dobro. O engano é justificável exatamente quando não decore de dolo ou de culpa. É aquele que, não obstante todas as cautelas razoáveis exercidas pelo fornecedor-credor, manifesta-se. Sobre o valor desta multa, nem sempre será tomado por parâmetro o valor da quantia paga. A repetição do indébito em dobro é calculada apenas sobre a importância excedida, porém a própria sanção poderá ser acrescida de juros e de correção monetária.

Ao contrário do Código Civil, o art. 42, parágrafo único, prevê, expressamente, a atualização monetária do valor pago indevidamente (e da própria sanção); também determina-se o pagamento de juros legais. Claro está que, além da sanção propriamente dita,da restituição do que pagou indevidamente e dos juros legais, o consumidor – embora não dito expressamente no dispositivo – faz jus a perdas e danos, desde que comprovados. É, novamente, a regra geral do art. 6º, VII.

Justamente pelo fato da pena não se confundir com a reparação é que não se pode afirmar que a repetição do indébito em dobro excluiria qualquer ressarcimento ou compensação que precisem ser feitos ao consumidor. Se este, agindo de boa fé, pagou por valores a maior não reconhecidos em sua conta telefônica, e o excesso causou-lhe consideráveis transtornos em seu cotidiano em virtude do desfalque em sua baixa renda mensal, nada obsta que seja proposta uma ação de reparação de danos em face da concessionária.

No entanto, há inúmeras outras situações nas relações de consumo que precisam ser civilmente apenadas. Principalmente quando se tratar da prestação de um serviço público por empresas concessionárias, as quais habitualmente utilizam-se de práticas abusivas e de métodos coercitivos contra os seus usuários, além de cometerem inúmeras falhas quanto à qualidade da comodidade oferecida. Não basta que haja uma expressa proibição em lei ou ato regulamentar. O descumprimento, desde que culposo ou doloso, precisa ser punido eficazmente, sendo que o melhor “fiscal” sempre será o consumidor.

Diga-se de passagem que a aplicação de multas pelo Estado e a reversão dos respectivos valores para um fundo oficial nem sempre será um eficaz procedimento contra as práticas abusivas. Em se tratando de interesses indivisíveis não há o que se discutir, mas quando o ato atingir diretamente o consumidor, este poderá requerer o pagamento da multa cominada através das vias administrativas ou judiciais.

Por exemplo, se a infração for praticada contra o meio ambiente, tipo a poluição de um rio por uma indústria, não ficaria ao alcance do consumidor requerer a aplicação de uma pena privada contra o fornecedor porque tal situação se caracteriza pela predominância do interesse difuso. Contudo, se o consumidor for alvo da recusa na prestação de um serviço, após ter comprovadamente solicitado, poderá exigir que se aplique uma penalidade. Ou, se ele receber um produto que ponha em risco a sua segurança e integridade física, independentemente de uma eventual composição em perdas e danos, bem como da rescisão contratual, poderá pedir a aplicação da multa.

Não tenho a pretensão de discutir agora quais todas as hipóteses nas relações de consumo mas quais seria cabível a aplicação de uma multa civil aos fornecedores, mas apenas apresentar a idéia quanto a esta necessidade do direito brasileiro. Os fatos que merecem uma apenação precisam ser valorados caso a caso pelo normatizador. É cediço, porém, que as práticas comerciais na sociedade de consumo caracterizam-se por um extremo dinamismo e mutabilidade ditadas pela massificação das relações econômicas. A velocidade como esse processo evoluiu evidencia que a definição de um fato como prática comercial passa por constantes reavaliações e conceitos.

Quanto aos serviços públicos, o mesmo não poderia ser diferente. E, devido ao processo de desestatização pelo qual foi submetido o Estado, em que as antigas empresas estatais se transformaram em pessoas jurídicas do setor privado, através da descentralização por delegação, eis que alguns serviços passaram a ser prestados dentro do sistema de concessão.

No processo de modernização do Estado, uma das medidas preconizadas pelo Governo foi a criação de um grupo especial de autarquias a que se convencionou chamar de agências, cujo objetivo institucional consiste na função de controle de pessoas privadas incumbidas na prestação de serviços públicos, em regra sob a forma de concessão ou permissão, e também na de intervenção estatal no domínio econômico, quando necessário para evitar abusos nesse campo, perpetrados por pessoas da iniciativa privada.

As agências reguladoras têm como atribuição principal o controle em toda a sua extensão, dos serviços públicos prestados e o exercício de atividades econômicas, fiscalizando a atuação dos concessionários, com o objetivo de promoverem a devida adequação ao interesse público. Dentre as inúmeras finalidades dessas entidades encontra-se a satisfação do usuário quanto ao atendimento de suas necessidades.

Desde que haja expressa autorização legal, nada obsta que as agências reguladoras editem normas prevendo a punição dos concessionários através de multas civis que poderão ser requeridas pelo usuário que for vítima da infração. Seja por decreto, ou por resolução de um órgão colegiado dessas autarquias, é possível criar um regulamento capaz de abranger um grande número de práticas abusivas com suas respectivas multas. Inclusive, é recomendável até que qualquer proposta nesse sentido seja submetida previamente a consulta pública durante um período a fim de que a participação do cidadão interessado possa respaldar a legitimidade democrática do ato normativo que será aprovado.

Em que pesem as críticas de parte da doutrina sobre a constitucionalidade do regulamento autônomo, aos poucos as normas das agências reguladoras vão sendo aceitas pela sociedade, sendo aplicadas até mesmo em sentenças judiciais. É certo, porém, que deve ser respeitada a hierarquia normativa a fim de que uma resolução editada pelo Conselho Diretor de uma agência não se torne contra legem. Nesse sentido, assim se posiciona Egon Bockmann Moreira sobre o regulamento autônomo:

"Não é viável que a autoridade administrativa inaugure a ordem jurídica através da emanação de regras que restrinjam o universo de direitos constitucionais e (ou) legalmente assegurados aos administradores. Contudo, é possível aos regulamentos gerar deveres, direitos e obrigações, desde que, expressa e previamente autorizados em lei (ainda que de forma abstrata). Não somente na condição de atos executivos, mas criando prescrições legalmente autorizadas. A lei fixa o “estândar” genérico, outorgando com precisão para a autoridade administrativa específica, o título competencial básico, que a autoriza a criar" (“Agências Administrativas, Poder Regulamentar e o Sistema Financeiro Nacional”, in Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, pp. 102 e 103)

Num país sedento por justiça, é perfeitamente compreensível porque tantas pessoas têm ingressado com suas ações nos Juizados Especiais, fato que provavelmente ainda continuará a se repetir nos próximos anos porque apenas uma fração da sociedade descobriu a tutela jurisdicional e vislumbrou os seus próprios direitos. Aliás, é bastante comum que muitos estudantes das ciências jurídicas, depois de aprenderem que são titulares de inúmeros direitos e garantias, como foi meu caso, comecem então a ajuizar as suas ações individuais enquanto se encontram na própria faculdade. Seja com o intuito de experimentarem o sistema ou de resolverem grandes e pequenos problemas de suas vidas até então em aberto.

Sem dúvida que o direito à inversão do ônus da prova previsto no artigo 6º, item VIII da Lei n.º 8.078/90 e mais a isenção de custas e de honorários advocatícios nos Juizados Especiais, consoante a Lei n.º 9.099/95, colaboram para que essa energia há tantos anos contida na sociedade brasileira se canalize para as relações de consumo. Porém, espera-se que, com a criação de novos direitos que permitam consumidor punir o fornecedor em situações de descumprimento do dever jurídico, o dano moral tornar-se-á mais perceptível pela sociedade brasileira, passando a cumprir o seu verdadeiro papel de resguardar valores mais elevados como aqueles que estão exemplificativamente determinados no artigo 5º, inciso X da Carta Magna: a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas.

Assim, seriam reduzidas consideravelmente o número de demandas judiciais fundadas em reparações por dano moral. As multas ou as “novas indenizações” ficariam padronizadas pela legislação, o que possibilitaria a composição do conflito entre as partes ou através dos órgãos de proteção ao consumidor em razão da maior certeza que haverá em relação ao resultado do conflito, evitando-se a indesejável banalização do instituto.

OBS: A ilustração acima foi retirada do site do Senado Federal em http://www.senado.gov.br/noticias/relacoespublicas/legislacao/legislacao.html
Elaborei inicialmente este texto quando ainda me encontrava na faculdade, em 2004. Estas são as fontes bibliográficas que auxiliaram na redação do artigo:

ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. 3. ed. Rio de Janeiro: Jurídica e Universitária, 1965.

BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. 4. ed. Vol. I. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1930.

BIBLIA. Tradução de João Ferreira de Almeida. 4. ed. Rev. São Paulo: Vida, 1996.

CAHALI, Yussef Said. Dano moral. 2. ed. Ver., atual. E ampl. São Paulo: RT. 2000.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Direito Administrativo. 10. ed. Rev. Ampl., e atual. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003.

CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

CEDAN, Paolo. Il dolo nella responsabilità extracontratual. Torino: Giappichelli, 1931.

CHAVES, Antônio. Tratado de direito civil. Vol. 3. São Paulo: RT, 1987.

ESPÍNOLA, Eduardo. Breves anotações ao Código Civil brasileiro. Bahia: 1918.

FISCHER, Hans Albrecht. Reparação dos danos no direito civil. Tradução de Antônio Arruda Férrer Correia. São Paulo: Saraiva, 1938.

FREITAS, Augusto Teixeira de. Consolidação das Leis Civis. 3. ed. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1876.

GABBA, C. F. Questioni di diritto civili. Tourino: Fratelli Bocca, 1911.

GOMES, Orlando. Obrigações. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Comentários ao Código Civil. Volume 11. São Paulo: Saraiva, 2003.

GRINOVER, Ada Pelegrini; et. all. Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

IHERING, Rudolf von. L’ espirit de droit romain. 2. ed. Paris: 1880.

LACERDA, Romão Côrtes de. Da responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Jacyntho Ribeiro dos Santos, 1929.

LIMA, Souza. Tratado de medicina legal. 6. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1912.

MOREIRA, Egon Bockmann. “Agências Administrativas, Poder Regulamentar e o Sistema Financeiro Nacional”, in Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

NOBREGA, Vandick Londres da. História e sistema do direito privado romano. 3. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961.

PEDROSA, Ronaldo Leite. Direito em história. 4. ed. Rev. Ampl., e atual. Nova Friburgo: Imagem Virtual, 2002.

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RODRIGUES, Sílvio. Responsabilidade civil. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 1986.

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SILVA, Américo Luís Martins da. O dano moral e a sua reparação civil. São Paulo: RT, 1999.

SILVA, Wilson Mello da. O dano e a sua reparação. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Resolvi transformar meu blogue numa página de conteúdo adulto

Mudei a configuração do blog! Quem entrou a partir das dez e meia de hoje aqui deve ter reparado no aviso do Google de que se trata de conteúdo para maiores de 18 anos.

Depois de ter colocado no meu último artigo uma ilustração referente às picantes obras do artista húngaro Mihály Zichy, fiquei preocupado. Vai que alguém com uma mente ascética resolve denunciar minha página ao Google por estar divulgando pornografia aqui e, num belo dia, este site é retirado do ar?

Não quero correr este risco. E, embora não tenha por objetivo promover a pornografia, não vou abrir mão da liberdade em expor meu pensamento ainda que venha a contrariar valores da moral da nossa sociedade. Muito menos quero deixar de ser um apreciador da arte, ilustrando eventualmente os meus artigos com famosas obras de domínio público, mesmo em se tratando de quadros eróticos.

Por outro lado, os temas que discuto aqui são para adultos. Falar sobre política, espiritualidade, sexo e tratar responsavelmente dos problemas da nossa coletividade exigem maturidade. Logo, são conversas para gente adulta...

OBS: Ilustração extraída do Blogger da Fulaninha em http://blogger-da-fulaninha.blogspot.com/2011/03/as-coisas-mais-perigosas-que-podemos.html

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

O sexo como entretenimento do casal

Semana passada, quando encontrei um irmão que ainda faz parte de uma das igrejas nas quais me congreguei, surpreendi-me quando ele falou que considerava errado o uso e a comercialização de determinados tipos de peças íntimas voltadas para a diversão sexual dos casais. Repliquei-lhe dizendo que não havia nada de pecado o homem e sua esposa terem uma vida conjugal picante, realizada com criatividade e exclusividade. Ele então reconsiderou suas posições, concordando que o uso de tais fantasias amorosas funcionariam como uma prevenção para as traições conjugais uma vez que, neste caso, o marido não precisaria procurar "fora de casa" a satisfação que encontraria em seu leito conjugal.

Nova Friburgo, cidade onde moro, é tida como uma das capitais da moda íntima do país. Aqui vende-se tanto as peças mais convencionais como aquelas que são usadas para brincadeiras amorosas. Ao andar pelo município, o turista se depara facilmente com cartazes de lindas modelos com seus belos corpos quase que nus, fazendo publicidades das fábricas de lingerie. E, constantemente, ouço religiosos reclamando disso, tentando ver pecado onde não existe, como se uma roupinha sexy de enfermeira, de policial ou mesmo de sádica fossem artigos demoníacos destinados à prostituição.

No entanto, se a maioria dos crentes estudassem mais profundamente as Escrituras, saberiam que toda essa repressão sexual não tem o mínimo respaldo bíblico. E o fato do livro de Gênesis dizer "crescei e multiplicai-vos", jamais significou que o sexo deva ser praticado apenas com a finalidade reprodutiva. Pois, se fizermos uma análise da própria Torá, encontraremos uma interessante passagem em que Abimeleque, rei dos filisteus, viu através de uma janela Isaque acariciando Rebeca, sua mulher (Gênesis 26.8).

Acontece que o verbo hebraico correspondente à palavra "acariciava", escolhida pelos tradutores da Bíblia para o português, significa brincar e vem da mesma raiz do nome de Isaque (riso), dando a entender que Isaque e Rebeca estavam fazendo uma brincadeira de conteúdo sexual sem fins reprodutivos, coisa que, na certa, geraria perplexidade para o moralismo dos tempos de João Ferreira de Almeida e do Padre Figueiredo. E para uma boa parte do público religioso de hoje, tal coisa ainda é um tabu.

Para os judeus sempre prevaleceu o ideal matrimonial em que a geração de filhos é vista como uma benção divina, o que também era comum nas diversas religiões da Antiguidade. E, quanto aos muçulmanos, eles têm pensamento idêntico. Uma exceção no judaísmo talvez possam ter sido os monges essênios contemporâneos de Jesus e que viviam em comunidades isoladas dentro de um padrão de vida ascética. Porém, o que prevaleceu dentro do judaísmo foi a visão dos fariseus, os quais deram origem ao rabinato.

Não tenho dúvidas de que o cristianismo tomou o seu rumo repressor por causa da influência grega. Inclusive porque a origem do celibato não é católica e muito menos judaica, mas sim pagã. Diferentemente dos povos do Médio Oriente, os gregos eram monógamos sendo provável que o celibato fosse praticado entre eles, o que aconteceu também em Roma com as vestais, as sacerdotisas virgens que deviam manter o fogo "sagrado" sempre aceso. E, como se sabe através da História, o real motivo da imposição do celibato ao clero católico foi justamente uma questão de poder afim de preservar a unidade dos bens da Igreja, de modo que a castidade tornou-se um alto padrão de comportamento para o cristianismo.


Entendo que é preciso promover uma desconstrução de todos esses valores repressores e contrários à natureza trazidos pelo catolicismo e dos quais os evangélicos ainda não se libertaram. A face humana do prazer deve ser motivo de celebração e não de culpa. As carícias trocadas entre o homem e a mulher, as técnicas destinadas a promover a excitação sexual, o uso de vestes sensuais, os contraceptivos, o cunnilingus e a obtenção do orgasmo clitoriano não podem jamais ser considerados pecado. Inclusive, uma proibição de tais coisas carece de qualquer amparo bíblico. Aliás, o livro de Provérbios orienta o seguinte:

"Seja bendito o teu manancial, e alegra-te com a mulher da tua mocidade. Como cerva amorosa, e gazela graciosa, os seus seios te saciem todo o tempo; e pelo seu amor sejas atraído perpetuamente." (Provérbios 5.18-19; ACR)


OBS: A primeira ilustração acima refere-se à obra Dois Amantes do artista persa (iraniano) Reza Abbasi, o qual viveu entre 1565 e 1635, tido como o mais reconhecido miniaturista persa, pintor e caligrafista da Escola de Isfahan, que floresceu no período Safavid debaixo do patronato de Shah Abbas I. Já a segunda gravura trata-se da pintura Fazendo Amor do húngaro Mihály Zichy (1827-1906). Apesar de ter vivido numa cultura muçulmana, a arte de Reza Abbasi foi bem anterior ao fundamentalismo islâmico do século XX, numa época em que o Oriente esteve bem à frente do Ocidente em termos de liberdade criativa.

domingo, 18 de setembro de 2011

Resistindo à nova escravidão do trabalhador neste admirável mundo novo

O sociólogo italiano Domenico de Masi, autor da conhecida obra “O ócio criativo” (2000), defendeu em sua monografia que, com o avanço da tecnologia, o homem poderia dispor de mais tempo para atividades como o lazer, a convivência familiar, os cuidados com a saúde e investir na própria formação profissional. Ao invés de laborar as oito horas diárias, o trabalhador futuro realizaria a mesma produção em três ou quatro horas.

O futuro chegou e, de fato, a tecnologia gerou o esperado aumento de produtividade. Porém, as pessoas não têm trabalhado menos. Elas estão é se ocupando por mais horas em suas tarefas profissionais, sentindo-se mais estressadas do que no final do século XX.

Segundo o interessante artigo “A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES DE TRABALHO”, escrito pela desembargadora do TRT de Campinas Tereza Aparecida Asta Gemignani e o bacharelando em Direito Daniel Gemignani, a situação atual do trabalhador neste “admirável mundo novo” pode ser explicada pelo fim da “distinção entre os tempos de trabalho e os tempos da vida privada, os tempos de atividade e os tempos de descanso”:


“O empregado passou a ser parte do sistema, passível de ser 'acessado' a qualquer hora, independentemente do período estipulado no contrato de trabalho. Além disso, diferentemente do apregoado por Domenico de Masi, volta a ser considerado apenas peça de uma engrenagem, e de maneira muito mais perversa e abrangente. Com efeito, enquanto nos primórdios do século passado essa engrenagem estava fixada num determinado espaço físico, e o trabalhador dela se libertava quando encerrava o expediente e as portas se fechavam, hoje ela tem existência virtual e, como tal, não para nunca, não fecha as portas, embora mantenha o velho esquema de limitar sua atuação a espaços compartimentalizados, sem ter a noção do conjunto, para que não haja a menor possibilidade de ocorrer perda de controle. Charlie Chaplin certamente ficaria surpreso ao descobrir que, apesar dos grandes avanços tecnológicos, os apertadores de parafuso e a velha bancada estão de volta, com a agravante de que agora não são os movimentos, mas a própria linha de produção que passa a acompanhá-lo para todo lugar, virtualmente, ampliando os espaços de sujeição” (extraído de http://www.trt3.jus.br/escola/download/revista/rev_80/tereza_aparecida_gemignani_e_daniel_gemignani.pdf)


Tal crítica é considerável e pode ser dirigida ao nosso modelo de economia desigual e que tem como seu princípio maior a busca da rentabilidade das empresas mesmo que em detrimento dos anseios básicos dos trabalhadores. Só que o capitalismo em si não pode ser considerado como a única causa do problema dessa fata de tempo visto que nós, como seres conscientes, permitimos a realização das nossas frequentes tarefas de forma automática sem prestarmos a atenção nos atos praticados. Nem mesmo às coisas que mais desejamos.

Em seu livro “Faster: the acceleration of just about everything” (Rapidez: a aceleração de quase tudo), o jornalista norte-americano James Gleick diz que os habitantes das cidades estão sofrendo daquilo que chamou de “doença da pressa”. Como resultado da tentativa de fazer uma quantidade maior coisas em menos tempo, nossas vidas estariam se tornando cada vez mais estressantes, o que poderá reduzir a longevidade da geração atual de trabalhadores em relação aos seus pais e avós nascidos entre as décadas de 20 e 40.

Como exemplo dessa vida apressada, podemos mencionar uma menor dedicação do tempo à leitura por parte das pessoas, as quais andam menos dispostas a ouvir seu semelhante durante um diálogo. Até na apreciação das artes, ou de obras num museu, um visitante já não se interessa tanto por contemplar um quadro como antigamente. Gasta-se nos dias de hoje menos segundos diante de uma pintura do que há uma década atrás.

São os novos tempos acelerados e não adianta apenas lamentarmos simplesmente pondo a culpa no sistema capitalista sem assumirmos uma postura pró-ativa diante da vida. Precisamos deixar de ser efeito dos acontecimentos externos para nos tornarmos a causa assumindo a direção das tendências mundiais. Deste modo, uma das ações a ser praticada por cada um é tomar a consciência daquilo que é feito automaticamente, o que tem a ver com o conhecimento de si próprio.

Pergunte cada um a si mesmo: Qual foi o prato que almocei hoje? Consigo recordar sobre como era o caminho que fiz indo de cada para o trabalho? O que dizia aquele artigo lido uns dias atrás na revista?

As indagações acima são exemplos de exercícios que nos ajudariam a tomar consciência dos atos realizados no cotidiano, despertando a nossa atenção em relação à vida. E, se pararmos para apreciar um pouquinho mais do dia, olhando para o ambiente natural, observando as pessoas na rua, ou degustando saborosamente os alimentos, certamente acrescentaremos mais qualidade de vida à nossa existência.

De acordo com as tradições hebraicas, os judeus devem reservar o sétimo dia da semana para o descanso absoluto. Trata-se do Shabat e que corresponde ao cumprimento do quarto mandamento do Decálogo. No sábado, devem repousar tanto o corpo quanto a alma, cultivando-se o regozijo e a elevação do espírito humano, devendo os homens imitarem o descanso do Criador do Universo abstendo-se de todo trabalho criativo tão logo o sol se põe na tarde de sexta-feira.

Por outro lado, o descanso semanal do ponto de vista hebraico é entendido como uma oportunidade para que a alma humana possa tomar alento, renovando suas forças, sendo também um instrumento de libertação do jugo imposto por qualquer sistema econômico:


“(...) o Shabat não é um simples dia de descanso, mas sim uma interrupção da banalidade, da futilidade cotidiana; o Shabat libera o judeu da mesquinhez pessoal, elevando-o às alturas sublimes desta vida. Os Mestres ensinam que o dia de descanso sabático foi estabelecido por Moisés ainda durante os anos da escravidão judaica no Egito, argumentando que, quando Moisés notou que os filhos de Israel não quiseram ouvi-lo “por causa da angústia do espírito e pela dura servidão”, compreendeu que essa letargia devia ser atribuída também ao cansaço físico, e introduziu o dia do Shabat. A motivação formal para pedir do rei um dia de descanso foi “para que os escravos judeus possam render mais trabalho”, mas no seu íntimo ele quis proporcionar aos seus infelizes e torturados irmãos um dia por semana de descanso, para poder convocá-los, congregá-los, para lhes expor a ideia da redenção que não tardaria, para despertar neles o ânimo do movimento libertador. Vê-se, pois, que o Shabat foi um dos mais importantes fatores a contribuir para a redenção do povo judeu”. (comentário bíblico a Êxodo 31.15, extraído da Torá – A Lei de Moisés. R. Meir Matzliah Melamed. São Paulo, Sêfer, 2001)


Que nós, brasileiros, também possamos fazer do nosso duplo descanso semanal um poderoso instrumento de liberdade. Tanto no aspecto individual como no coletivo. Crendo que, quando, aparentemente, “tá tudo dominado”, a vida proporciona uma formidável reviravolta:


"As forças vivas presentes na rede social deixam assim de ser reservas passivas à mercê de um monstro insaciável, para se tornarem positividade imanente e expansiva que os poderes se esforçam em regular, modular ou controlar (...) Nessa perspectiva, a produção do novo já não aparece como exclusivamente subordinada aos ditames do capital, nem como proveniente dele, muito menos dependente de sua valorização – ela está disseminada por toda parte e constitui uma potência psíquica e política." (Peter Pal Pelbart. A colonização do futuro in Filosofia Especial, nº 8, págs. 46-55)


Que possamos romper com as correntes da alienação do sistema econômico e construirmos algo novo!

Uma boa semana para todos!


OBS: A imagem acima refere-se à capa do livro de Domenico de Masi e foi extraída do site do Submarino em http://www.submarino.com.br/produto/1/91581/ocio+criativo,+o

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Se eu fosse eleito qualquer coisa, não mudaria o mundo!

Nesta terça-feira (13/09), quando eu estava no lançamento de um livro, uma pessoa me perguntou se eu viria candidato a vereador em 2012. Respondi a ele que "ESTOU FORA" desta política eleitoral.

Meus caros amigos, cheguei à conclusão de que, se fosse eleito, não iria fazer nem uma parcela daquilo que idealizo ou do que as pessoas esperariam de mim. Seria o primeiro a ficar decepcionado com meu mandato na Câmara Municipal.

Dificilmente alguém chega ao poder sem estar comprometido porque as eleições exigem recursos que muitas das vezes estão além das condições econômicas do candidato. E, no caso das disputas majoritárias (cargos de prefeito, governador, senador e presidente), a grana pra campanha vem do chamado "caixa dois", dinheiro público desviado que os políticos utilizam para se auto-financiarem. Uma prática que já está há bastante tempo banalizada, sendo muitas das vezes tolerada entre as nossas autoridades a ponto de se considerar antiético um político denunciar o esquema do outro.

Acontece que, uma vez lá dentro, mesmo que o vereador tenha conseguido chegar por suas "pernas" e sem prometer cargos ou benefícios pessoais, ele será minoria no meio de um bando de carniceiros que apenas querem se beneficiar com o poder. Ele acaba isolado lutando contra um bando de homens de sem vergonha e, se persistir em combater a corrupção pode não conseguir aprovar os seus projetos como desejava antes de ser eleito. E o povo simplesmente vai achar que o seu vereador eleito não está fazendo nada porque, no mínimo, é um malandro e preguiçoso.

"e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará" (João 8.32; ARA)

Lembrando aqui desta célebre citação bíblica do 4º Evangelho, posso afirmar que foi o confronto com a verdade que me libertou deste autoengano acerca da política eleitoral.

Quando olho pra mim mesmo, percebo que não seria capaz de ir muito além da média dos políticos. E, se eu fosse tentado a me corromper, como afirmar que jamais iria cometer um vacilo? Porém, mesmo que não viesse a roubar, sei que ficaria logo entediado com as chatas sessões da Câmara cheias de discussões hipócritas sem nenhum sentido. Seria pego inúmeras vezes bocejando e quem sabe até acessando às escondidas o Facebook do celular enquanto fingiria estar escutando o outro vereador discusar suas mentiras na tribuna. Com o tempo, poderia acabar faltando as sessões e perdendo o meu entusiasmo com o mandato.

Todavia, o pior de tudo seria vestir uma máscara quando saísse de casa. Aí, quando as pessoas viessem falar comigo na rua, já não estariam tratando com o Rodrigo, mas sim com o meu personagem. Durante a própria campanha eleitoral, os amigos e pessoas de meu relacionamento passariam a ser tratados como eleitores e potenciais cabos eleitorais. Eu teria que esconder deles t odas as minhas intenções, pensamentos e jeito de ser afim de me enquadrar no padrão que a sociedade deseja. Viveria em função das expectativas alheias, deixando de ser aquilo que realmente sou.

Deste modo, para não alimentar o autoengano e nem pregar mentiras, prefiro não subir mais neste palco. Acredito que há outros meios bem mais eficientes de ajudar pessoas. Seja ensinando como um professor numa escola, auxiliando anonimamente quem se pôe no meu caminho, transmitindo boas ideias, ouvindo o outro, mobilizando a população para fiscalizar o governo, etc. Em resumo, seria trabalhando através dos meios que a vida coloca à disposição para que aconteça uma nova realidade, a utopia que eu como seguidor de Jesus chamo de "Reino de Deus", ainda que jamais vejamos a concretização completa de todos esses ideais.

Em 2012, não serei candidato, mas continuarei lutando como um ativista político em várias frentes!


OBS: A ilustração acima refere-se a uma foto tirada por José Cruz para a AGência Brasil e que foi extraída da Wikipédia em http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Urna_eletr%C3%B4nica.jpeg

terça-feira, 13 de setembro de 2011

O dia em que Jesus se aperfeiçoou

Uma das passagens dos evangelhos que muitos cristãos evitam refletir ou se aprofundar diz respeito à cura da filha de uma mulher estrangeira concedida por Jesus. Este episódio encontra-se tanto em Mateus (15.21-28) como em Marcos (7.24-30), sendo que, devido ao melhor detalhamento do 1º Evangelho, escolhi transcrever esta citação abaixo:

"E, partindo Jesus dali, foi para as partes de Tiro e de Sidom. E eis que uma mulher cananeia, que saíra daquelas cercanias, clamou, dizendo: Senhor, Filho de Davi, tem misericórdia de mim, que minha filha está miseravelmente endemoninhada. Mas ele não lhe respondeu palavra. E os seus discípulos, chegando ao pé dele, rogaram-lhe, dizendo: Despede-a, que vem gritando atrás de nós. E ele, respondendo, disse: Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel. Então chegou ela, e adorou-o, dizendo: Senhor, socorre-me! Ele, porém, respondendo, disse: Não é bom pegar no pão dos filhos e deitá-lo aos cachorrinhos. E ela disse: Sim, Senhor, mas também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus senhores. Então respondeu Jesus, e disse-lhe: O mulher, grande é a tua fé! Seja isso feito para contigo como tu desejas. E desde aquela hora a sua filha ficou sã." (Mt 15.21-28; versão de Almeida Corrigida e Revisada Fiel)

Existem diversos posicionamentos acerca do que foi narrado pelo escritor do Evangelho. Uns entendem que Jesus estava testando a fé daquela mulher, fazendo do episódio uma explicação para o não recebimento de milagres. Outros compreendem que o motivo do relato seria para justificar o ingresso de não judeus no Reino de Deus, aludindo aos "tempos dos gentios". Tem ainda aqueles que interpretam o envio de Jesus "às ovelhas perdidas da casa de Israel" como um forte argumento pró-judaizante. Porém, o certo é que a grande maioria dos leitores cristãos se sentem mesmo incomodados com o que leem e preferem não se pronunciar quanto à atitude chauvinista que, a partir deste momento, foi abandonada por Jesus.

Quando nos fechamos dentro de uma concepção pronta e acabada em relação a qualquer assunto, corremos o sério risco de empobrecer a nossa visão de mundo e também deixarmos de exercitar a capacidade de reflexão dada pelo Criador. Assim, a fuga de termos paradoxais torna-se uma atitude imatura e estúpida da mente religiosa, além de ser uma conduta que jamais poderá responder às inquietações íntimas que trazemos. Logo, fugir de uma reflexão sobre o texto porque ele perturba as concepções sobre um messias divinizado e/ou perfeito não vale a pena.

Não tenho a mínima pretensão de querer explicar de maneira completa o significado da passagem bíblica em análise e nem de invalidar outras interpretações existentes quanto ao assunto, gerando polêmicas sem sentido na internet. Porém, a graça de Deus me dá plena liberdade de escrever algo que entendo ser útil para a edificação, ainda que aos olhos de muitos possa parecer herético e desafiador à castradora ortodoxia cristã. E vai ser com este desprendimento que pretendo expor o meu pensamento nas próximas linhas.

Por algum motivo, Jesus e seus discípulos precisaram sair do território da Palestina. Estavam eles em numa região vizinha e que também era dominada pelo gigantesco Império Romano com o predomínio da cultura helenista.

Séculos antes, a Palestina esteve sob o domínio dos gregos. Um rei perverso chamado Antíoco Epífanes tentou de diversas maneiras impor aos judeus o universalismo da cultura helenista. Guerras e revoltas aconteceram e, numa determinada ocasião, afim de ferir frontalmente a nação judaica, Antíoco invadiu o Templo de Jerusalém e profanou o santuário. Costumes da Torá de muitos séculos foram mudados e a prática da religião do povo encontrava-se seriamente ameaçada.

Jerusalém não aceitou ser transformada em mais uma Antioquia (a exemplo das Alexandrias de Alexandre Magno). Reagindo à dominação cultural, os judeus enfrentaram militarmente a invasão grega dentro do território israelita, lutando bravamente durante os dois séculos que antecederam a vinda de Jesus. O ódio entre gregos e judeus aumentou cada vez mais. E Israel era a única nação dominada pelo então Império Selêucida que ainda não havia sido assimilado pelo helenismo.

Sob a dominação romana, os judeus alcançaram uma convivência menos pior do que quando foram anexados pelos gregos. Porém, os conflitos entre gregos e judeus não terminaram. Havia cidades gregas na Palestina e muitos soldados de Roma que oprimiam com arrogância a nação judaica eram de origem grega. Pertinho de Nazaré, aldeia onde Jesus foi criado, ficava a cidade Séforis com sua arquitetura helênica que chegou a ser o centro administrativo da Galileia na época.

Presenciando de perto a opressão estrangeira desde criança, Jesus fez a sua opção ministerial pelas pessoas pobres de seu povo. E, dentro deste contexto, não seria surpreendente que Jesus tivesse sido influenciado pelo pensamento etnocentrista dos judeus de seu tempo. Por ter nascido homem como todos nós, Jesus precisou que o ensinassem a falar, andar, vestir-se com o talit, alimentar-se, ter os hábitos de higiene dos anciãos (as ablusões), fazer orações, ler as porções da Torá nos dias de sábado nas sinagogas e até mesmo a interpretar as Escrituras. Logo, é evidente que a visão de Jesus foi influenciada pelas duas escolas formadoras do pensamento rabínico, as quais refletiam as ideias de dois mestres mencionados pela Mishná - Shamai e o ancião Hillel.

Antes de Jesus ter iniciado o seu ministério, Hillel e Shamai já divergiam entre si quanto à aceitação de prosélitos gentios dentro do judaísmo, Enquanto o ancião Hillel era mais flexível, Shamai mostrava-se mais fechado.

Nos ditos atribuídos a Jesus nos Evangelhos sinóticos, nota-se a presença tanto do pensamento de Shamai quanto de Hillel, embora com uma possível predominância deste. Só que, em ideias relacionadas ao divórcio e à evangelização dos não judeus, há mais semelhanças com o pensamento de Shamai como se observa na orientação dada nos versos de 5 a 6 do capítulo 10 do 1º Evangelho aos discípulos, quando estes foram comissionados pelo Mestre:

"Não tomeis o caminho dos gentios, nem entreis em cidade de samaritanos. Dirigi-vos, antes, às ovelhas perdidas da casa de Israel." (Mt 10.5-6; versão da Bíblia de Jerusalém - BJ)

A grande beleza que encontro no áspero diálogo de Jesus com a mulher siro-fenícia é a capacidade de transcendência do Mestre, o qual se abriu para aprender com aquela sábia estrangeira do sexo feminino.

Ora, certamente que, quando consideramos o Messias como alguém profundamente humano, fica muito mais fácil admirar-se diante da passagem bíblica em comento. Pois, se Jesus era de carne e osso, já não podemos exigir dele onipresença, onisciência, onipotência e muito menos perfeição moral (como se fosse possível enquadrar seres humanos dentro de um padrão nosso de comportamento).

No livro de Isaías, depois do profeta mencionar o nascimento do Emanuel através de uma "jovem" que iria conceber, ele também falou que a futura criança iria aprender a rejeitar o mal: "Ele se alimentará de coalhada e de mel até que saiba rejeitar o mal e escolher o bem." (Is 7.15; BJ)

Com o encargo de aprender a não se deixar dominar pelo mal e escolher o bem, dentro dos limites da humanidade igual a todos, Jesus precisou desenvolver a reflexão, a alteridade e o amor pelo diferente. Ao conceder cura à filha daquela mulher, Jesus fez uma escolha que, como já foi demonstrado acima, seria bastante difícil para um judeu que vivia naquela época debaixo da opressão estrangeira e de um sistema político-econômico vil.

Fico imaginando a situação de um líder sindical de trabalhadores rurais explorados por poderosos fazendeiros. Supondo que, às custas de muito esforço e perseguições, esta presidente do sindicato consiga construir e equipar um pequeno posto de saúde para atender às empobrecidas famílias dos empregados das glebas numa determinada região. Aí, um belo dia, aparece desesperada a esposa de um rico pecuarista precisando de socorro urgente para um filho doente e o líder sindical precisa rever todas as suas concepções de vida para permitir atendimento para quem não tinha direito.

Igualmente é com embaraço ainda maior que Jesus parece ter passado quando procurado por aquela mulher estrangeira, a qual nem ao menos foi recomendado por cidadãos judeus como havia acontecido no caso da cura do servo do centurião romano (Lc 7.3). Tanto é que ela se humilhou implorando graça para sua filha.

Com isto, pode-se dizer que o homem Jesus transcendeu naquele dia. O esperado Messias de Israel foi influenciado pela fé de uma estrangeira e mudou de posição. Sua maneira de pensar teve que ser revista e o Mestre deixou de lado o xenofobismo para liberar a bênção sobre alguém pertencente a um povo opressor aos judeus (daí o termo depreciativo "cachorrinhos" descrito pelo evangelista).

É pelo mesmo caminho de Jesus que nós devemos andar. Não temos que alimentar ambições loucas de santidade perfeccionista, mas sim andarmos com graça rumo ao nosso melhoramento ético e existencial, o qual deve ser feito com abertura. Precisamos estar disponíveis para mudanças de posições afim de acolhermos quem quer que se encontre no nosso caminho, independentemente da pessoa crer em Deus ou não da mesma maneira que nós. Pois só assim é que vamos de fato conseguir amparar o outro, sem impormos requisitos quanto à origem, classe social, ideologia política, posição moral, grau de instrução, poder aquisitivo, idade, profissão, sexo e até mesmo a orientação sexual.


OBS: A ilustração acima refere-se encontra-se
no Très Riches Heures du Duc de Berry (em português, As mui ricas horas do duque de Berry), importante obra religiosa do século XV. Extraí a imagem da Wikipédia, sendo tal material de domínio público.

sábado, 10 de setembro de 2011

Recordações de Ilhéus


Eu acho que o escritor verdadeiro é aquele que escreve sobre o que ele viveu” (Jorge Amado)

Das três cidades que melhor conheci na Bahia (Salvador, Porto Seguro e Ilhéus), gostei mais da capital brasileira do cacau.

Fui por duas vezes à Bahia. A primeira deu-se em julho de 1998, quando decidi incluir um novo roteiro durante as férias do meio do ano na faculdade. Nesta época, eu ainda morava na mineira Juiz de Fora e passeava uns dias na casa onde minha mãe morava na cidade de Niterói. Foi quando então resolvi sair da monotonia e embarquei sozinho num ônibus para Porto Seguro, onde fiquei por cerca de uma semana conhecendo praias, andando de barco e curtindo as noitadas atrás da mulherada. Tinha somente meus 22 anos e mal sabia lidar com a testosterona em excesso no meu sangue.

No ano de 2005, quando já estava com Núbia, retornei à Bahia. Nesta oportunidade, fomos diretamente para Salvador de avião e planejávamos ir até Ilhéus e Porto Seguro, percorrendo outras cidades do litoral. Permanecemos alguns dias na capital do estado, aproveitando para conhecer alguns dos pontos turísticos soteropolitanos mais badalados - o centro histórico do Pelourinho, o Elevador Lacerda, o antiquíssimo Farol da Barra (não chegamos a entrar nele), velhas e tradicionais igrejas como a do Nosso Senhor do Bonfim, o Dique do Tororó e uma decepcionante tarde em Itapuã. Enchi-me de acarajé e morria de calor mesmo sendo em pleno mês de maio.

Contudo, depois de alguns dias, eu já não suportava mais continuar numa cidade grande e me sentia estressado embora estivesse na Bahia. Decidimos pegar um ônibus na rodoviária e fomos para Ilhéus através da BR-101, numa viagem de mais de 400 quilômetros que durou a tarde toda e o comecinho da noite. E, sem nos desanimarmos, passamos um delicioso final de semana na terra de infância do escritor Jorge Amado.

A pousada que escolhemos ficava numa área bem bonita em frente à Praia dos Milionários. O clima estava mais ameno se comparado à nossa estadia em Salvador. Além do mar, era possível desfrutar de uma agradável piscina. E para a minha tranquilidade, a parte central da cidade com sua boemia distanciava-se alguns quilômetros dali.

Em Ilhéus, nada de ir pra night. Procurei entrar em acordo com Núbia para que dormíssemos cedo, descansando durante a noite afim de aproveitarmos bem o dia. Andamos bastante pelas ruas do Centro da cidade, tendo conhecido alguns locais de interesse histórico e cultural.

Uma das lembranças que tenho do Centro de Ilhéus é a casa onde viveu o Jorge Amado, hoje um centro cultural. Outra, porém, é o Bataclan, um cabaré da primeira metade do século XX onde os poderosos fazendeiros de cacau divertiam-se com as meretrizes e que serviu de cenário para o famoso livro Gabriela, cravo e canela. Ali, num dos quartos da casa, fizemos umas fotos bem engraçadas, brincando de coronel e quenga.

Conta-se que, naqueles velhos tempos, os coronéis subornavam o padre para que demorasse mais a rezar as missas. Aí, enquanto suas esposas ficavam nas igrejas, eles iam para o famoso "Bar Vesúvio" com a suposta desculpa de cuidar dos negócios, onde então havia uma passagem secreta subterrânea com acesso ao bordel. E, na certa, muita gente deveria fazer vista grossa quanto ao funcionamento do estabelecimento de Maria Machadão (personagem retratada pela literatura amadiana), local que, para os efeitos legais e morais, tratava-se de um armazém denominado “Secos e Molhados”.

No entanto, a nossa estadia em Ilhéus acabou sendo curta e restrita praticamente a um final de semana. No domingo, quando voltamos de um belíssimo passeio à Lagoa Encantada, recebi a triste notícia na caixa postal do celular de que meu avô paterno encontrava-se muito mal no Hospital Militar de Juiz de Fora. Por causa disto, foi necessário cancelar os nossos planos de visitar Itacaré e de passar por Porto Seguro na volta. Comprei então dois bilhetes da TAM rumo a Belo Horizonte com conexão em São Paulo, partindo num dos primeiros voos da segunda-feira.

Apesar da interrupção, posso dizer que aquela foi uma viagem muito bonita e divertida. O passeio na Lagoa Encantada foi fantástico, tendo se tornado o local mais bonito que pude conhecer na ocasião. Pois, além do maravilhoso lago de água doce, desfrutamos também de uma relaxante cachoeira e de um verde bem intenso compondo o cenário ao nosso redor, representando o pouco que restou da cobertura original da Mata Atlântica que, antes da chegada do colonizador, cobria o leste do continente desde o Rio Grande do Norte até o Rio Grande do Sul.

Ano passado, porém, fiquei sabendo que o então governo Lula chegou a se mostrar favorável a um empreendimento de mineração na região. Segundo cheguei a ler depois, a Bahia Mineração teria anunciado a construção do Terminal Portuário de Uso Privativo da Ponta da Tulha, gerando preocupações quanto à Área de Proteção Ambiental (APA) da Lagoa Encantada e Rio Almada, tendo em vista que a vegetação local iria ser devastada. Com isto, representantes do Ministério Público Federal e de organizações não governamentais ambientalistas formularam as suas fundadas críticas, destacando que a Mata Atlântica é constitucionalmente protegida e que existem espécies em extinção na região da APA.

Tomara que uma região dessas continue preservada e livre de qualquer ameaça.


OBS: As fotos deste artigo referem-se, nesta ordem, à vista do Centro de Ilhéus, à frente do Bar Vesúvio, onde tiramos fotos junto a uma estátua do escritor Jorge Amado, à visita que fizemos ao Bataclan e à Lagoa Encantada.