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sábado, 30 de abril de 2011

Reflexões sobre o caminhar da humanidade...

"O Universo sabia que estávamos chegando"
(Freeman Dyson)


Em outras épocas eu já fui favorável ao controle da natalidade. Principalmente quando abracei as causas ecológicas. Hoje, porém, sou contra e acho que o planejamento familiar seria mais satisfatório para que tenhamos um equilíbrio populacional.

Penso que o mundo não pode pensar em ter menos habitantes do que já tem ou do contrário corremos o risco de enfrentarmos um caos no sistema previdenciário nos países desenvolvidos e em desenvolvimento. A própria China, que impôs à sua população o número de uma criança por casal já estuda a possibilidade de aumentar para duas e, desta maneira, retornar ao nível de reposição que é a média de 2,1 filhos por mulher. Isto porque a nação mais populosa do mundo já começa a antever o caos que atravessará no futuro com um número enorme de idosos para sustentar.

Aparentemente a impressão que tem seria que os problemas ambientais estão relacionados a um excesso de população. Contudo, o que tenho observado é que a nossa crise ecológica está mais relacionada com a maneira como tratamos da natureza.

Somos consumidores irresponsáveis de energia! Produzimos alimentos em excesso e ainda assim deixamos o nosso semelhante passsar fome. Por causa de interesses mercadológicos, várias tecnologias limpas deixam de ser utilizadas e/ou compartilhadas. Temos uma péssima alimentação, não fazemos uma reciclagem tão eficiente do lixo e ainda estamos destruindo os ecossistemas por causa da ganância das elites mundiais.

Ora, se o homem reduzisse e modificasse o seu consumo de carne, certamente conseguiríamos produzir alimentos para bem mais de 8 bilhões de pessoas, considerando também as melhores tecnologias que poderão existir no futuro.

Se usássemos mais a bicicleta do que o automóvel particular, usaríamos menos combustíveis, o ar de nossas cidades seriam melhores e o trânsito também, visto que até os ônibus fariam viagens mais curtas. Além disso, a saúde da nossa população urbana melhoraria consideravelmente pedalando e respirando menos poluição, o que representaria menos gastos com o SUS.

Como ambientalista não prego que devamos retroceder até à Idade da Pedra e rejeitarmos um padrão de vida confortável que foi alcançado nas últimas décadas. Nada disso! Pois defendo que invistamos mais em tecnologias, mas que, ao mesmo tempo, o nosso consumo torne-se mais racional e o trato com a natureza mais amoroso através de uma relação inclusiva (não mais de dominação) capaz de reverenciar a Vida.

Durante o século XX, o homem pisou na Lua, enviou robôs a Marte, estudou quase todos os planetas do nosso sistema solar, além de ter colocado no espaço sondas e satélites. E tudo foi feito tão rapidamente que dificilmente poderia ser crido por alguém que vivesse no século XIX ou mesmo até o período da 2ª Guerra Mundial.

Acredito que, se a humanidade não se auto-destruir, teremos neste século uma expansão populacional para além do nosso planeta azul. Como filhos da Terra e também do cosmos, temos em nosso íntimo o desejo de conquistar o universo, o que, certamente, vai expandir nossas futuras moradias não só para Marte, mas também para Tritão e Titã, respectivamente as luas de Netuno e Saturno, através da criação de câmaras de vida artificial com o aproveitamento de materiais existentes nestes mundos.

Também não duvido que um dia o homem poderá conquistar outros sistemas solares, descobrindo a Via-láctea através de telescópios avançados e de viagens siderais. Talvez ainda descobriremos vida em outros planetas com atmosfera habitável e quem sabe até nos surpreenderemos com a existência de seres inteligentes que evoluíram de outras espécies, mas que serão capazes de se comunicar conosco pois considero muita audácia da nossa parte acharmos que a natureza nos fez prontos e acabados.

Pois bem. Se o céu é o limite, parece-me que muitos ainda não compreenderam qual é a missão do homem de agora em diante depois que o homem multiplicou-se, encheu a Terra e a antropomorfizou. Porém, antes precisamos nos lembrar do primeiro ofício de Adão quando foi colocado por Deus como o jardineiro do Éden, uma história que nos induz ao dever de cuidarmos da natureza ao invés de destruí-la. Do contrário, iremos acabar dizimando a nós mesmos e talvez a biosfera terrestre.


OBS: A imagem acima foi extraída do site do INPE, em http://www.inpe.br/index.php

sexta-feira, 29 de abril de 2011

A internet virou um serviço essencial!


Foi muito interessante o debate que houve no dia 27/04/2011 entre o IDEC e o governo e acho que a sociedade brasileira precisa acompanhar melhor tais discussões.

Estou de acordo com os deputados Weliton Prado (PT-MG) e Ana Arraes (PSB-PE). Atualmente está muito difícil alguém conseguir viver no mundo globalizado sem a internet e pode-se dizer que a rede mundial de computadores já é enorme estratégica para a economia do país, devendo a inclusão digital chegar em todas as localidades, sejam grandes ou pequenas.

Neste contexto, não seria interessante que uma agência reguladora passe a atuar nesta tão importante atividade?

Como que o consumidor na sua fragilidade vai poder fiscalizar a execução de prazos e os preços das tarifas sem o apoio de um órgão regulador?

Segue a matéria divulgada pela Agência Câmara de Notícias:


Governo e Idec divergem sobre regime do serviço de banda larga

Representantes do governo e dos consumidores divergiram nesta quarta-feira (27), em audiência pública na Comissão de Defesa do Consumidor que debateu o Programa Nacional de Banda Larga, sobre o regime de prestação do serviço. Para o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), a banda larga deve ser um serviço prestado em regime público, o que possibilita ao governo impor às prestadoras obrigações de universalização e de continuidade, além do controle das tarifas. Para o governo, porém, a melhor forma de garantir a ampliação do acesso é aumentar a competitividade do mercado.

A advogada do Idec Veridiana Alimonti afirmou que o Programa Nacional de Banda Larga tem “graves insuficiências” por não alterar o regime de prestação do serviço. Hoje o regime é privado, com liberdade das prestadoras para estabelecer seu preço. A Lei Geral de Telecomunicações (LGT - Lei 9.472/97) prevê que os serviços de telecomunicações considerados essenciais pelo governo serão prestados em regime público, sujeitos a deveres de universalização. Segundo a LGT, cabe ao Poder Executivo, por meio de decreto, “instituir ou eliminar a prestação de modalidade de serviço no regime público”.

O presidente da empresa pública Telebrás, Rogério Santanna, defendeu que os serviços continuem a serem prestados em regime privado. Segundo ele, no Brasil hoje o número de acessos em serviço na telefonia fixa – o único serviço de telecomunicações prestado em regime público – é menor do que o número de acessos na telefonia móvel, que é prestado em regime privado. “A questão central não é o regime de prestação do serviço, mas a competitividade no setor”, destacou.

Santanna disse que a competição no setor de banda larga será ampliada a partir da oferta da rede Telebrás para uso dos pequenos provedores de internet, que atualmente disputam apenas 9% do mercado. “Hoje cinco empresas dominam o mercado de banda larga no Brasil, sendo que três detêm mais de 80% do mercado”, informou. De acordo com o programa do governo, a Telebrás não deverá ofertar o serviço diretamente ao consumidor, mas ofertará suas redes no atacado para os pequenos provedores.

Infraestrutura
O secretário das Telecomunicações do Ministério das Comunicações, Nelson Fujimoto, disse, na audiência, que a prioridade do programa é disponibilizar a infraestrutura de rede nos locais onde hoje ela não existe. Conforme o secretário, a ideia do governo é, em um primeiro momento, apenas “massificar” o serviço (ou seja ampliar o acesso a ele) e não “universalizá-lo” (torná-lo acessível a toda a população), levando em conta que a cobertura atual da banda larga é muito baixa.

A meta do programa é oferecer o serviço em 35 milhões de domicílios até 2014, a R$ 35. Se for concretizada a redução tributária para o setor – em fase de negociação com os governos estaduais – pode ser oferecida banda larga a R$ 15, em 39,8 milhões de domicílios. Em 2010, o número de conexões era de 11 milhões de domicílios, e o preço médio, de R$ 70. O foco inicial do plano é o investimento na infraestrutura e, em seguida, em aplicações como serviços de governo eletrônico. Em um terceiro momento, o governo deverá investir em conteúdos digitais.

Fujimoto também destacou a necessidade de aprovação, pelos deputados, da Medida Provisória (MP) 517/00, que prevê a desoneração de modens, para a implementação do programa.

Serviço essencial
Para o deputado Weliton Prado (PT-MG), que sugeriu a audiência, está claro que a internet de banda larga é um serviço essencial para a população. “Não se faz a inclusão social hoje sem se fazer a inclusão digital. O serviço tem que caber no bolso do consumidor.”

Já a deputada Ana Arraes (PSB-PE) destacou que a concorrência não regula o preço. “A mão do Estado é importante mesmo para o serviço prestado em regime privado”, disse. A deputada afirmou que é preciso que o governo tenha cuidado para que “a implementação da banda larga não seja um desastre, como foi a implantação da telefonia celular no Brasil”.

Segundo ela, no caso da telefonia celular, as regiões menos populosas e mais carentes foram prejudicadas. “A banda larga não pode chegar só aos locais de muito movimento”, ressaltou. O presidente da Telebrás informou que uma das prioridades da empresa pública será o atendimento dos estados da Região Norte.


Reportagem – Lara Haje
Edição – Daniella Cronemberger


Fonte: Agência Câmara de Notícias - extraído de http://www2.camara.gov.br/agencia/noticias/CIENCIA-E-TECNOLOGIA/196171-GOVERNO-E-IDEC-DIVERGEM-SOBRE-REGIME-DO-SERVICO-DE-BANDA-LARGA.html

quinta-feira, 28 de abril de 2011

O frio chega na serra!


Nesta semana, o frio do outono finalmente chegou a Nova Friburgo, pegando muita gente de surpresa.

Já costumado com o clima imprevisível daqui, tenho buscado me defender como posso, sem timidez para tirar os agasalhos do armário, dentre os quais o meu poncho boliviano comprado no ano passado.

Durante o dia, minha esposa Núbia tem assistido TV no sofá da sala, protegendo-se com o edredom enquanto passa a programação.


Possivelmente esta onda de frio deve passar dentro de alguns dias, mas é bem provável que, no próximo mês, tenhamos temperatura mais baixas na região. É quando o tempo muda radicalmente de modo que, no final de maio e começo de junho, chego a me sentir dentro de uma geladeira.

Tudo isto é bem convidativo para um bom vinho, um fondue ou tortas de chocolate. Coisas bem light, não?

domingo, 24 de abril de 2011

Familia de Deus - Asaph Borba

Celebrando a Páscoa, gostaria de compartilhar este magnífico louvor de Asaph Borba, "Família de Deus", gravado em 2005 na cidade de Curitiba:

A Páscoa e a nossa passagem civilizacional


Já que estamos na Páscoa, considero muito oportuno meditarmos acerca da passagem civilizacional que a humanidade necessita atravessar, afim de que venhamos superar a atual crise ecológica e existencial do momento.

Curiosamente, em decorrência da globalização imposta pelo neoliberalismo e pelos meios de comunicação, estamos nos tornando uma só sociedade planetária. Um movimento que foi elaborado com uma finalidade excludente hoje se torna algo extremamente positivo porque produz uma admirável dialética - a globalização solidária. Já não dá para pensarmos em fazer política focando unicamente o interesse local ou de um país. Pois hoje vivemos todos numa única Arca de Noé, de modo que a minha sobrevivência inclui a todos e não somente a de minha família, visto que a Terra é um todo orgânico - um super organismo vivo.

A antiga sociedade patriarcal já se vai. Hoje a mulher toma parte nas decisões e a presença do feminino contribui para nos humanizar e nos tornarmos mais benevolentes e capazes de compreender melhor a Vida. E isto ocorre quando o masculino e o feminino se integram.

Já não dá mais para vivermos num mundo dividido em classes. Devemos ser um só povo e todos devem ter acesso à alimentação, à água, à saúde, à moradia, à comunicação, à educação e à preservação do planeta. E não somente o homem deve ser destinatário de uma política de inclusão, mas todos os seres como os animais, as plantas e os minerais, como participantes de uma única família global.

Assim, devemos ter a consciência de que não somos mais seres isolados ou que a Terra seja um somatório de elementos como a terra seca, água, rochas atmosfera e seres vivos, mas sim uma totalidade que se articula. Então, pode-se dizer que nós somos a Terra e que a Terra somos nós. Somos feitos do pó da terra e ao pó voltaremos, de modo que precisamos amar e preservar Gaia, nossa Pacha Mama. Aliás, o homem é a Terra que fala graças à animação dada pelo sopro do Eterno, de modo que precisamos reverenciar este Mistério - a Vida.

Assim, desejo que possamos compreender, viver e contribuir para esta importante passagem que o nosso planeta e sua humanidade estão atravessando.


OBS: A palavra Páscoa vem do hebraico Pessach (פסח), significando "passagem", o que pode ser compreendido também através do grego Πάσχα.

O nome Homem vem de humus que quer dizer "terra fecunda". Também é o vocábulo que traduz nas nossas bíblias o significado de Adão que vem de hebraico Adam da mesma raiz de adamá (terra). Ou seja, somos todos filhos da Terra.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

A utopia de um mártir


"Se é mister que de peitos valentes,
Haja sangue em nosso pendão,
Sangue vivo do herói Tiradentes,
Batizou este audaz pavilhão"

(Medeiros e Albuquerque)


Um dos hinos pátrios que mais admiro é o da Proclamação da República. Não tanto pela sua melodia que Leopoldo Miguez também elaborou muito bem, mas sim pelo encorajamento que a letra pode despertar no povo brasileiro, incentivando a nação a construir um futuro melhor, socialmente mais justo e sob as asas da liberdade. Pois, diferentemente do Hino Nacional, a composição de Medeiros e Albuquerque não parece alimentar ilusões sobre o grito do Ipiranga, mas convoca a nação para conquistar a sua tão sonhada independência.


"Do Ipiranga é preciso que o brado,
Seja um grito soberbo de fé,
O Brasil já surgiu libertado,
Sobre as púrpuras régias de pé."



Neste feriado de 21 de abril, em que o país relembra mais um ano da morte de Joaquim José da Silva Xavier (1792), pouco ainda compreendemos acerca do significado que deve ser dado à luta deste homem que atuou contra o domínio da Coroa Portuguesa.

Apesar dos esforços de Tiradentes, a Inconfidência Mineira não contou com uma adesão total da sociedade na época e teve também seus traidores a exemplo de Joaquim Silvério dos Reis (1756-1819), os quais se venderam em troca do perdão de suas dívidas e favores individuais. Inclusive, muitos na elite de Minas Gerais tinham medo de que o movimento dos inconfidentes resultasse no fim da escravidão, o que contrariava os interesses de poderosos fazendeiros da elite colonial.

Ironicamente foi um príncipe da Coroa Portuguesa que, exatamente três décadas depois da morte de Tiradentes, proferiu o brado do Ipiranga, libertando formalmente o Brasil do domínio estrangeiro. Assim, sem uma independência de fato, eis que, durante o século XIX, fomos nos tornando mais uma zona de influência do Império Britânico. Vivemos os anos de 1800 extremamente subservientes à rainha Vitória, resistindo aos interesses ingleses apenas quanto ao uso da mão-de-obra escrava.

Com a Proclamação da República (1889), ocorrida uns 100 anos depois da Inconfidência Mineira, Tiradentes tornou-se símbolo da nova forma de governo. Contudo, o hino republicano ficou sendo apenas mais "um grito soberbo de fé", ou quem sabe uma profecia para que a nação viesse a conquistar sua verdadeira liberdade sobre um Brasil que havia surgido liberto apenas no plano das ideias.

Ora, mas o que é a história sem a utopia? Será que a utopia e o realismo não são duas facetas de uma mesma existência social?

É graças à utopia de homens sonhadores que o status quo é desafiado e as instituições são transformadas. Isto porque qualquer sociedade necessita de um projeto para o seu futuro, o que é movido pela utopia, criando o sonho coletivo. É o que diz o pensador Leonardo Boff em seu livro "O despertar da águia" da editora Vozes:


"A utopia é aquele conjunto de projeções, de imagens, de valores e de grandes motivações que inspiram sempre práticas novas e conferem sentido às lutas e aos sacrifícios para aperfeiçoar a sociedade. Pela utopia se procura sempre ver para além da realidade dada. A realidade dada nunca é dada porque é, na verdade, sempre feita. E é feita a partir das potencialidades e virtualidades presentes na história. Por isso a utopia não se opõe à realidade. Ela pertence à realidade, ao seu caráter virtual. A prática humana procura transformar o virtual em real, quer dizer, tenta alcançar a utopia. Mas nunca o consegue. A utopia está sempre um passo à frente. A montanha aponta para outra montanha, para outra e sempre para outra..."


Tiradentes e tantos outros homens que lutaram por um Brasil melhor, mais progressista e com justiça, abraçaram a utopia. Eles não se conformaram com a realidade em que viviam e desejavam promover transformação social. Muitos foram presos, outros exilados, vários sofreram tortura e tiveram aqueles que ainda pagaram com a vida. Por sua vez, existiram também os que se acovardaram, omitiram-se, deixaram se corromper e se tornaram vis traidores.

Hoje, 219 anos depois da morte de Tiradentes, a voz de seu sangue une-se com as de Abel e a de Jesus num clamor a Deus por justiça. Eu que, quando criança, chegava a confundir a figura de Tiradentes com os quadros sobre Jesus, não estava totalmente errado porque podemos de certo modo compreendê-lo como um tipo de líder messiânico, um brasileiro com alma de rei, mas que surgiu da plebe colonial. E, assim como Jesus, ele não foi um rico aristocrata, outros inconfidentes da elite regional que estudaram em Coimbra, mas um militar que adquiriu considerável cultura mesmo tendo ficado totalmente órfão aos 11 anos, formando-se na escola da vida.

É certo que os positivistas republicanos do século XIX souberam dar a Tiradentes o devido reconhecimento e, inteligentemente, souberam mitificar sua biografia. Porém, cabe às gerações do presente atualizar os ideais de liberdade plantados pelo alferes. Com uma respeitável constituição democrática, temos ao nosso alcance a possibilidade de transformarmos a luta dos inconfidentes numa mensagem viva em favor da educação, da igualdade, do direito à saúde, do combate à corrupção e da justiça social de um modo geral, evitando que as forças conservadoras façam da imagem de Joaquim José da Silva Xavier mais um ídolo mudo da história nacional.

Que vivamos a utopia de Tiradentes!


OBS: A imagem acima trata-se da pintura do "Tiradentes Esquartejado" de Pedro Américo (1843-1905). Foi pintada em 1893 e se encontra no Museu Mariano Procópio, em Juiz de Fora (MG), cidade onde morei por vários anos de minha vida

terça-feira, 19 de abril de 2011

Um dia fomos todos bebês...


Uma das orientações que alguns religiosos, psicólogos e conscienciólogos propõem para que possamos aceitar o nosso próximo com os seus erros e defeitos, liberando o nosso perdão, seria o exercício de mentalizar cada pessoa em sua tenra infância.

Desta maneira, podemos compreender a nossa humanidade e estabelecermos alguma identificação com o outro.

Lembre-se que você já foi criança um dia!

Segue aí a letra de uma interessante música do Arnaldo Antunes que vem ao encontro deste tema:


Saiba
(Arnaldo Antunes - 2003)

Saiba: todo mundo foi neném
Einstein, Freud e Platão também
Hitler, Bush e Sadam Hussein
Quem tem grana e quem não tem

Saiba: todo mundo teve infância
Maomé já foi criança
Arquimedes, Buda, Galileu
e também você e eu

Saiba: todo mundo teve medo
Mesmo que seja segredo
Nietzsche e Simone de Beauvoir
Fernandinho Beira-Mar

Saiba: todo mundo vai morrer
Presidente, general ou rei
Anglo-saxão ou muçulmano
Todo e qualquer ser humano

Saiba: todo mundo teve pai
Quem já foi e quem ainda vai
Lao Tsé Moisés Ramsés Pelé
Ghandi, Mike Tyson, Salomé

Saiba: todo mundo teve mãe
Índios, africanos e alemães
Nero, Che Guevara, Pinochet
e também eu e você

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Quando a ineficiência da Justiça faz um país desfalecer...


“No dia seguinte Moisés assentou-se para julgar as questões do povo e este permaneceu em pé diante dele, desde a manhã até cair da tarde. Quando o seu sogro viu tudo o que ele estava fazendo pelo povo, disse: 'Que é que você está fazendo? Por que só você se assenta para julgar, e todo o povo espera em pé, desde a manhã até o cair da tarde?' Moisés lhe respondeu: 'O povo me procura para que eu consulte a Deus. Toda vez que alguém tem uma questão, esta me é trazida, e eu decido entre as partes, e ensino-lhes dos decretos e leis de Deus'. Respondeu o sogro de Moisés: 'O que você está fazendo não é bom. Você e o seu povo ficarão esgotados, pois essa tarefa lhe é pesada demais. Você não pode executá-la sozinho. Agora, ouça-me! Eu lhe darei um conselho, e que Deus esteja com você! Seja você o representante do povo diante de Deus e leve a Deus as suas questões. Oriente-os quanto aos decretos e leis, mostrando-lhes como devem viver e o que devem fazer. Mas escolha dentre o povo homens capazes, tementes a Deus, dignos de confiança e inimigos de ganho desonesto. Estabeleça-os como chefes de mil, de cem, de cinquenta e de dez. Eles estarão sempre à disposição do povo para julgar as questões. Trarão a você apenas as questões difíceis; as mais simples decidirão sozinhos. Isso tornará mais leve o seu fardo, porque eles o dividirão com você. Se você assim fizer, e se assim Deus ordenar, você será capaz de suportar as dificuldades, e todo este povo voltará para a casa satisfeito'.” (Êxodo 18.13-24; Nova Versão Internacional - NVI)


Um dos grandes problemas da lentidão da Justiça brasileira (e de vários países também) e que tanto faz a nossa nação desfalecer parece ser o grande volume de ações que entopem os tribunais. Como já diziam meus professores na faculdade, “Justiça lenta é injustiça” e muitos apontam o excesso de recursos como uma das principais causas para esta absurda morosidade, sendo que, há vários anos, várias propostas sobre uma reforma processual têm sido formuladas e discutidas no meio jurídico.

Nossa Constituição Federal permite que toda e qualquer demanda, em tese, possa chegar aos tribunais superiores pela via extraordinária. Segundo o artigo 102, inciso III, alínea a, bastaria uma violação a qualquer dispositivo constitucional para que um processo seja apreciado pelo Supremo Tribunal.

No entanto, os tribunais superiores jamais tiveram condições de julgar satisfatoriamente todos os recursos que suscitam discussões sobre supostas controvérsias constitucionais ou a respeito da interpretação das leis federais. Tanto o STF quanto o STJ ficaram abarrotados de processos que incluem desde os litígios mais banais até questões de alta indagação capazes de comprometer a governabilidade do país.

Um dos maiores erros praticados pela Justiça (ou pelo Congresso que faz as leis) teria sido a exigência do prequestionamento constitucional ou da legislação federal afim de que fosse admitido um recurso para os tribunais superiores. Os ministros do STF e do STJ passaram a impor que o exame de admissibilidade verificasse a existência do questionamento na própria decisão recorrida dos desembargadores quando estes julgaram a causa em segunda instância (nos tribunais estaduais e federais). Com isto, os magistrados de 2º grau passaram a se omitir propositalmente em muitos dos acórdãos afim de não deixarem motivos para que as partes conseguissem levar os processos até Brasília.

A meu ver, uma decisão judicial precisa ser completa, elucidativa e capaz de enfrentar todos os questionamentos feitos pelas partes desde que relevantes e essenciais para a pacificação social. O Judiciário deve antes de mais nada assumir o seu papel de esclarecedor do Direito, ensinar a população de um país como as normas devem ser aplicadas no nosso cotidiano.

Neste sentido, a história bíblica citada no início deste artigo tem tudo a ver com o momento em que o Brasil atravessa, visto que a nação nunca soube observar tais princípios que são basilares para o exercício da jurisdição.

No texto de Shemot (Êxodo), o personagem Moisés, líder do povo israelita, exercia entre eles as três funções estatais. Numa época em que ainda não se conhecia a clássica separação dos poderes de Montesquieu, o chefe supremo de um povo costumava responder ao mesmo tempo pela administração (o governo), da elaboração das leis (atividade legislativa) e da aplicação destas, decidindo sobre as demandas existentes entre as pessoas ou impondo penas aos delinquentes (função jurisdicional).

Ora, o sogro de Moisés, retratado no texto como sendo um homem experiente e habilidoso, soube muito bem como aconselhar o genro a proceder diante daquela situação mal organizada, ensinando-lhe princípios importantíssimos nos quais deveríamos meditar mais. E, dentro de uma linguagem mais sistematizadora, poderíamos dividi-los em uns quatro itens:

1.Apresentar a Deus os conflitos do povo;
2.Ensinar o Direito e sua plicação à população;
3.Escolher magistrados que sejam “capazes, tementes a Deus, dignos de confiança e inimigos de ganho desonesto”.
4.Delegar a estes funcionários subordinados o julgamento das demandas menos importantes e determinar a eles o que procedam o encaminhamento daquelas que são mais relevantes.

Com base nestas orientações, pode-se dizer que não basta haver a descentralização e a desconcentração da atividade jurisdicional, mas também é necessário que os magistrados, inclusive o presidente do STF, exerça um magistério diante da população, estabelecendo um diálogo permanente com o cidadão e que seja capaz de encorajar o cumprimento das leis.

Entretanto, verdade seja dita que o Judiciário ainda encontra-se muito diante do povo e das suas necessidades. Os discursos dos juízes desembargadores e ministros geralmente são compreensíveis mais pela elite e por pessoas com formação jurídica do que pelo homem comum. As cortes dos tribunais mais fazem lembrar os tempos da monarquia do que a república (coisa pública) onde os trajes dos profissionais acaba sendo um dos primeiros embarreiramentos.

Os ministros do STF e do STJ, bem como os desembargadores e juízes mais antigos, deveriam exercer o papel de serem os sábios anciãos deste país. Homens que sejam ao mesmo tempo acessíveis e éticos, sem esconderem-se atrás de um falso moralismo. Também não deveriam ser pessoas soberbas, como deuses donos do saber, mas sim levar “a Deus as suas questões”, o que significa humildade e a expectativa de alcançar a compreensão diante de cada demanda.

Sem dúvida que, pela profundidade daquilo que podemos chamar de princípio de Jetro (um dos nomes do sogro de Moisés que aparece nas tradições formadoras da Torah), daria para se escrever livros a respeito. Porém, fico vislumbrado da sabedoria de um texto tão antigo como é a Bíblia, a qual, milênios depois, continua sendo um farol capaz de orientar homens e nações na procura de um caminho capaz de nos conduzir a um mundo melhor com mais espírito de ajuda mútua entre todos os seres e as sociedades das quais fazemos parte.


OBS: A ilustração acima refere-se a uma obra do artista holandês Jan Victors e retrata a despedida do encontro ocorrido entre o sogro de Moisés e seu genro. Acredita-se que foi pintado cerca do ano de 1635.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Bênção Irlandesa

Por ocasião do meu aniversário de 35 anos, recebi um e-mail ontem da esposa de meu primo Sérgio contendo a "Bênção Irlandesa", a qual pareceu que se trata de uma composição de autoria anônima e muito interessante.

Ainda estou meditando sobre o seu significado, inclusive do ponto de vista cultural dos irlandeses, e resolvi compartilhar a bênção aqui no blogue:


BÊNÇÃO IRLANDESA


Que a estrada se erga no encontro de seu caminho

Que o vento esteja sempre às suas costas

Que o sol brilhe quente sobre sua face

Que a chuva caia suave sobre seus campos

E até que nos encontremos de novo

Que Deus te guarde na palma de sua mão.

domingo, 10 de abril de 2011

Nós temos o direito de construir a usina de Belo Monte?


Achei super correto a OEA (Organização dos Estados Americanos) ter criticado o Brasil pelo projeto de construção da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu (PA). Sua Comissão de Direitos Humanos enviou um pedido afim de que “el Gobierno de Brasil suspenda inmediatamente el proceso de licencia del proyecto de la Planta Hidroeléctrica Belo Monte y que impida la realización de cualquier obra material de ejecución”.

Para a OEA, o governo brasileiro deve suspender as obras na área do empreendimento, caso as demandas das populações indígenas afetadas não sejam satisfeitas. Segundo especialistas e lideranças locais, um trecho de aproximadamente 100 quilômetros do rio, onde estão situadas algumas tribos, poderá secar com a construção da usina.

Adicionalmente, la CIDH solicitó al Estado garantizar que (...) las comunidades indígenas beneficiarias tengan acceso a un Estudio de Impacto Social y Ambiental del proyecto, incluyendo la traducción a los idiomas indígenas respectivos”, acrescentou o comunicado da OEA.

De fato é uma insanidade o governo brasileiro investir bilhões de reais do dinheiro público num empreendimento danoso para o meio ambiente e populações indígenas locais da Amazônia. Algo que não suprirá satisfatoriamente a demanda energética do país já que as indústrias estão concentradas na região centro-sul, de modo que parte significativa da produção de Belo Monte acabará sendo dissipada durante a sua transmissão até às unidades consumidoras.

Ao tomar conhecimento dos telejornais sobre a reação do Brasil quanto ao posicionamento da OEA, não pude deixar de condenar a prepotência nacionalista do nosso governo, o que chegou a lembrar os arrogantes presidentes militares da época da ditadura. Pois estes foram causadores de muitos males ao meio ambiente com as perdulárias obras faraônicas a exemplo da Transamazônica, das hidrelétricas de Itaipu e Tucuruí, da usina atômica de Angra dos Reis e a Ferrovia do Aço. Porém, mentalidade tanto dos parlamentares governistas quanto os da oposição continua mantendo a mesma visão estreita dos generais, como se pode verificar nas palavras deste senador tucano, ao considerar "absurda" a recomendação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA:

A OEA está entrando numa questão que diz respeito à soberania do Brasil, não há sentido. A OEA poderia dar uma contribuição sobre os pontos que, ao juízo dela, deveriam ser melhor avaliados", afirmou Flexa Ribeiro (PSDB-PA), presidente da subcomissão de acompanhamento das obras de Belo Monte no Senado

A meu ver, nós, brasileiros, precisamos nos libertar do nacionalismo aprisionador de uma era passada e buscarmos um novo olhar para os recursos naturais. Falo de uma visão que seja livre de conceitos ultrapassados como a “soberania nacional” afim de nos tornarmos adeptos de uma globalização solidária e que esteja baseada numa consciência planetária.

Neste sentido, entendo que o Brasil e os demais países do norte da América do Sul são apenas guardiões de um dos maiores patrimônios naturais da biosfera – a Amazônia. Pois para mim as florestas e os demais ecossistemas em geral (tanto os terrestres quanto os aquáticos) não devem ser destinados apenas a uma nação ou mesmo à humanidade, mas sim à coletividade de seres vivos que povoam o planeta.

O que defendo vai além do principal argumento da OEA que preocupou-se com as populações indígenas, pois proponho que tenhamos uma visão naturo-centrista que supere as limitações do antropocentrismo, visto que nem os brasileiros, os índios da América do Sul ou o Homo sapiens são donos da Amazônia. Aliás, se o cacique Seattle ainda estivesse vivo nos dias de hoje para dar uma entrevista, certamente ele diria aos jornalistas o seguinte:


Nós não somos donos da pureza do ar ou do brilho da água. Como pode então comprá-los de nós? Decidimos apenas sobre as coisas do nosso tempo. Toda esta terra é sagrada para o meu povo. Cada folha reluzente, todas as praias de areia, cada véu de neblina nas florestas escuras, cada clareira e todos os insetos a zumbir são sagrados nas tradições e na crença do meu povo. Sabemos que o homem branco não compreende o nosso modo de viver. Para ele um torrão de terra é igual ao outro. Porque ele é um estranho, que vem de noite e rouba da terra tudo quanto necessita. A terra não é sua irmã, nem sua amiga, e depois de exauri-la ele vai embora. Deixa para trás o túmulo de seu pai sem remorsos. Rouba a terra de seus filhos, nada respeita. Esquece os antepassados e os direitos dos filhos. Sua ganância empobrece a terra e deixa atrás de si os desertos. Suas cidades são um tormento para os olhos do homem vermelho, mas talvez seja assim por ser o homem vermelho um selvagem que nada compreende (…) O que é o homem sem os animais? Se todos os animais acabassem os homens morreriam de solidão espiritual, porque tudo quanto acontece aos animais pode também afetar os homens. Tudo quanto fere a terra, fere também os filhos da terra” (trecho da carta do cacique Seattle, da tribo Suquamish, ao presidente norte-americano Francis Pierce, em 1855, depois de o governo dos Estados Unidos ter demonstrado que pretendia comprar o território ocupado pelos índios)


Igualmente pode-se dizer que o governo brasileiro e nem a sua elite política são donos da Amazônia. E o mal que o país faz à floresta atinge a todos os brasileiros, a humanidade e os seres vivos do planeta, pois basta vermos as terríveis enchentes e secas que temos enfrentado. Assim, levar adiante o projeto da usina de Belo Monte é atentar contra a vida do planeta, equivalendo a um criminoso biocídio.


OBS: A foto do ministro Edson Lobão foi extraída do site do Ministério das Minas e Energia em http://www.mme.gov.br/mme/noticias/destaque_foto/destaque_163.html com os créditos atribuídos a Antônio Cruz.

sábado, 9 de abril de 2011

O Wellington que existe em cada um


Nosso país ainda se encontra consternado com o massacre ocorrido em 07/04/2011 na escola de Realengo, Rio de Janeiro, onde o assassino Wellington Menezes de Oliveira, 23 anos, atirou em vários estudantes dentro de uma sala de aula, tendo sido a maioria das vítimas meninas adolescentes.

Como geralmente acontece nestas ocasiões, surgem pessoas defendendo a adoção da pena de morte. Já outros indagam como um ser humano pode ser capaz de cometer uma atrocidade dessas, de modo que eu cheguei a encontrar comentários na internet de que o assassino fosse o próprio diabo em forma de gente, na certa desejando que ele já estivesse a arder no fogo do inferno.

Entretanto, o que muito me chamou a atenção neste caso, além das questões religiosas, foi a preocupação de Wellington em relação aos indefesos animais, muito incoerente em relação aos atos por ele praticado nesta quinta-feira. Na carta por ele assinada, o maníaco escreveu que a sua casa deveria ser destinada para abrigar os bichos de rua, conforme pode ser lido no trecho a seguir:


“(...) Eu deixei uma casa em Sepetiba da qual nenhum familiar precisa, existem instituições pobres, financiadas por pessoas generosas que cuidam de animais abandonados, eu quero que esse espaço onde eu passei meus últimos meses seja doado a uma dessas instituições, pois os animais são seres muito desprezados e precisam muito mais de proteção e carinho do que os seres humanos que possuem a vantagem de poder se comunicar, trabalhar para se alimentarem, por isso, os que se apropriarem de minha casa, eu peço por favor que tenham bom senso e cumpram o meu pedido (...)”


A verdade é que qualquer um de nós é capaz de matar e até de praticar as mesmas coisas que fez Wellington. Isto porque somos todos psicopatas em potencial. Basta que venhamos a alimentar coisas negativas em nosso íntimo, cultivando o ódio e desejos homicidas, para que um dia acabemos transgredindo certos limites da convivência humana.

Nunca cheguei a concretizar um homicídio, mas já agredi pessoas. Tanto fisicamente como por palavras. E, durante um lamentável período de minha vida, desenvolvi um comportamento digno de um psicopata que veio à tona em junho de 1997 também numa instituição de ensino. Foi quando usei computadores da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) para divulgar mensagens preconceituosas contra negros e homossexuais, pregando abertamente o extermínio de gays.

http://www1.folha.uol.com.br/fol/tec/tx033414.htm

Com 21 anos e cursando Administração naquela universidade, aparentemente eu tinha tudo para levar uma vida sadia e bem sucedida. Jovem de classe média alta, morava em um apartamento só pra mim dado pelo avô. Recebia uma boa mesada equivalente a mais de seis salários mínimos da época que me permitiu poupar dinheiro para aplicar em fundos de investimento nos bancos. E, embora fosse obeso, tinha boa aparência, não era portador de doenças graves e oportunidades não faltavam para eu me dar bem. Só que joguei fora muitos dos presentes que a vida tinha proporcionado.

É certo que tive transtornos familiares desde a infância. Assisti minha mãe apanhando do genitor do meu irmão do meio, perdi o meu pai aos 7, passei a ser criado pelos avós paternos a partir da 2ª série do 1º grau, tive uma adolescência auto-reprimida sem amigos e namorada e aos 14 tornei-me um fanático religioso.

Contraditoriamente, fui um excelente aluno no 1º grau, pois costumava tirar notas excelentes, era um dos melhores nas turmas e fui até selecionado para participar de uma Olimpíada de Matemática na 8ª série (1991). Meus professores diziam aos estudantes do grupo de elite intelectual do colégio que não precisaríamos nos preocupar com o futuro quanto à nossa inserção no mercado de trabalho e nas instituições de ensino superior porque seríamos adolescentes bem dotados. Porém, o meu lado emocional ainda se encontrava cheio de bloqueios e eu tinha enormes dificuldades de ajustamento com os colegas a ponto de ter sido convidado a deixar várias escolas (andei por 12 instituições ao todo no 1º e no 2º graus) e sofria o tal do bulling que até então nem era diagnosticado com este termo no país.

No 2º grau, os bloqueios emocionais já estavam prejudicando o aprendizado escolar, afetando meu interesse e a concentração na sala de aula para acompanhar as explicações do professor. Aos 17, afastei-me da igreja por não mais aguentar os cultos. Eu me sentia impuro por causa dos desejos por sexo e não suportava estar em pecado dentro do ambiente eclesiástico. Como não tinha namorada, por não conseguir aproximar-me das garotas, tive as primeiras relações sexuais com prostitutas, o que ocorreu antes do primeiro beijo na boca.

Outra contradição no meu comportamento era que, apesar de tímido, eu tinha facilidade para escrever. Não sentia medo de falar em público para pessoas desconhecidas e fazia frequentes perguntas polêmicas dentro da sala de aula (um dos principais motivos do bulling). E, também aos 17 anos, envolvi-me com política estudantil, o que se tornou uma substituição da igreja (ou da compulsão), tendo eu percorrido mais de 40 escolas na cidade afim de formar um número grandes de grêmios nos colégios afim de disputar a presidência da entidade estudantil secundarista local. Queria deixar minha marca no movimento, mas acabei passando para a faculdade no vestibular.

Depois daquele envolvimento inicial com a política, minhas novas compulsões foram juntar dinheiro e a internet. Comecei a usar a rede no final de 1995 quando comecei meu curso de Geografia no turno da noite na UFJF. Demorava horas no computador, tendo chegado a esconder-me um dia no laboratório de informática. Descobri o bate-papo virtual através de chats acessado via telnet que funcionada na UFMG e em outras instituições. Também incluí meu e-mail em listas de discussões mantidas pela Unicamp, sendo que uma delas era justamente sobre sexo, coisa que raramente eu fazia.

Tendo mudado meu curso para Administração em 1997, após ter prestado novo vestibular, meu vício de internet continuou. Logo no começo do período letivo, houve uma greve dos professores universitários e eu aproveitava para usar o computador quase todos os dias na faculdade. Também fiquei muito impressionado com o assassinato do índio Galdino no mês de março daquele ano em Brasília e apreciava a reconstituição da cena feita pelos telejornais. Depois que as aulas voltaram, senti dificuldades de acompanhar algumas disciplinas e aquilo muito me frustrava, temendo pelo fracasso profissional. Então, ao invés de resolver a dificuldade, eu continuava fugindo para a internet e me fixei na tal lista de discussão sobre sexo.

Enquanto a maioria dos participantes do grupo virtual debatia sadiamente sobre sexualidade, resolvi chamar a atenção escrevendo mensagens discriminatórias contra os homossexuais. Vendo que os meus comentários repercutiam no grupo, fui postando e-mails cada vez mais bombásticos e que causavam reações de protesto dos participantes. Uma das mensagens, “Um mundo sem gays”, despertou o professor Luiz Mott da UFBA e do Grupo Gay da Bahia a manifestar o interesse de me processar, mas não me fez frear.

Sem dar valor a mim mesmo, fui ainda mais longe e extrapolei limites. Um certo dia, decidi escrever que era racista e enviei uma mensagem com o subject “Como espancar um gay” onde fiz apologia explícita ao assassinato e à violência aos homossexuais masculinos, chegando a expor técnicas de tortura e sobre como ocultar o cadáver da vítima. Resolvi responder ao professor Luiz Mott ameaçando incendiar a sede de sua ONG.

Poucos dias depois, quando o caso chegou aos grandes jornais do país, fiquei perplexo com aquela repercussão. O Brasil inteiro queria saber quem seria o internauta racista que pretendia matar homossexuais. E, como o login do e-mail na universidade era grafado como “rancora” (formado pela primeira letra do meu nome junto com o segundo sobrenome), não ficou difícil para que as pessoas da família descobrissem antes da imprensa de que o caso do estudante rancoroso tinha a ver comigo.

Tudo aquilo me preocupava e ao mesmo tempo me excitava. Eram os meus cinco minutos de fama. Já que eu não conseguia ir bem nos estudos universitários, não alcançava a santidade, não conseguia uma garota para namorar, estava bloqueado para escrever novos artigos nos jornais e me sentia muito infeliz, aquela foi uma maneira de deixar a marca de minha existência no mundo – o primeiro crime virtual de racismo no país. Ao ler grupos de direitos humanos repudiando o conteúdo das mensagens, minha mente doentia delirava como se estivesse tendo um orgasmo. Um dia, vendo que a notícia já estava indo para o esquecimento, apresentei-me ao jornal local como o dono do e-mail, mas negando a autoria do delito sem fornecer explicações sobre como meu login e senha pudessem ter sido acessados por uma terceira pessoa. Então fiz a polêmica durar mais tempo.

Praticamente ninguém acreditou na mentira que contei aos jornais e ainda bem que senti a angústia daquela brincadeira burra. Mesmo sem nunca ter matado alguém com as mãos, aquelas mensagens configuravam crime e poderiam justificar tranquilamente uma expulsão da faculdade através de processo administrativo. Vovô, que estava completando 80 anos, ficou transtornado quando soube do envolvimento do neto e os outros familiares também se preocuparam. Meu desespero passou a ser tanto que perdi a paz, desejando retornar no tempo e evitado tudo aquilo.

Apesar de meus advogados terem apresentado uma prova técnica de que existe a possibilidade da conta de e-mail ser violada por terceiros em terminais coletivos de acesso à internet através de um programa que captura tudo que o usuário digita no teclado, fui declarado culpado pela comissão de professores da UFJF. Então, espelhando-me na renúncia feita pelos deputados corruptos investigados pelas CPIs, contrariei minha família quando deixei de renovar a matrícula no semestre seguinte afim de evitar a expulsão. O ano de 1997 tornou-se então um tempo perdido, exceto pelo aprendizado pessoal visto que se tornara o meu fundo de poço, um inferno de verdade, pois eu sofria com a incerteza de ser condenado pela Justiça e acabar preso.

As investigações policiais não foram conclusivas e os autos do inquérito tramitaram por quase dois anos entre a Delegacia, o Ministério Público e a Justiça Federal para novos períodos de renovação de prazo. Nos meus depoimentos, consegui ser coerente e continuei negando o crime e foi impossível provarem quem foi o autor das mensagens preconceituosas.

Durante o tempo em que estive atormentado por meus verdugos, a angústia ajudou-me a refletir sobre a importância da vida e a inutilidade de ter cultivado tanto lixo no meu coração. Então, sem ter a certeza do que pudesse me acontecer no futuro, resolvi gastar o dinheiro aplicado no banco afim de viajar, conhecer lugares novos, relacionar-me com pessoas e ter experiências diferentes, inclusive aproximar-me das garotas.

Sei que minha liberação envolvendo sexo e excesso de álcool (já bebia desde os 18) não é exemplo para ser testemunhado dentro de uma igreja. Mas há quem diga que “Deus escreve certo por linhas tortas” e acho que a afirmação não se torna improcedente dependendo da maneira como interpretamos a vida. Na minha fuga dos problemas e busca pessoal, estabeleci contatos com a natureza, decidi entrar numa dieta rigorosa para perder peso (cheguei a ter uns 106 quilos com 21 anos) e consegui transar com mulheres sem precisar pagar. Meus olhos viram cada paisagem incrível neste país e no exterior e, em 1999, tendo me mudado para Nova Friburgo, apaixonei-me por Núbia, hoje minha esposa.

Em julho daquele ano, quando fui visitar meu avô em Juiz de Fora, procurei o atendimento da Justiça e descobri que as investigações foram arquivadas no mês de março ano por iniciativa do próprio Ministério Público Federal, o que foi motivo de grande felicidade. Enfim, eu estava livre de um tormento e podia aproveitar a vida sadiamente sem prejudicar ninguém ou a mim mesmo.

Tudo aquilo me serviu de grande aprendizado, tendo a vida me ensinado que deveria deixar de lado certas aparências e preocupações tolas, as quais jamais iriam resolver o grave problema auto-provocado pelo qual passei. O refúgio junto á natureza ajudou-me a iniciar um processo de interiorização alguns anos antes de retornar para a igreja em 2005, trazendo-me de volta às causas sociais pelo despertar da consciência ecológica. Foi graças às caminhadas no meio rural e o namoro nada “santo” com Núbia que pude compreender a gravidade do mal que tinha feito ao espalhar tais mensagens carregadas de preconceito e de violência pela internet. Descobri que Núbia era afro-descendente, filha de mãe negra e moradora de uma favela, de modo que passei a conhecer mais de perto uma realidade que até então eu desprezava. E transgredi uma orientação familiar para que procurasse uma mulher do meu nível social ou melhor. Só que nesta altura da minha vida, o ex-maníaco da intenet já não estava nem aí para convenções, moralismos e opiniões alheias.

O que posso aprender comigo mesmo é que em todo ser humano há uma dimensão positiva, capaz de promover o bem, como também existe uma outra dimensão negativa, diabólica, destrutiva. Somos o “trigo” e ao mesmo tempo o “joio” daquela parábola do Evangelho. Somos “yin” e também “yang”, sábios e loucos, construtores e destruidores, Madre Tereza e Adolf Hitler. Ou até um miserável como o maníaco atirador da escola em Realengo.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Perplexidade

Minha esposa estava assistindo o programa da Ana Maria Braga quando a transmissão normal da TV GLOBO foi interrompida para noticiar o massacre de estudantes ocorrido nesta data (07/04/2011) numa escola em Realengo, Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro.

Como coloquei no título da mensagem, o sentimento que estou tendo acerca do fato é de perplexidade porque não esperava que algo deste tipo, mais comum nos Estados Unidos, fosse ocorrer justo aqui no Brasil.

Chamou também a minha atenção o teor das cartas deixadas pelo atirador, demonstrando ser ele uma pessoa de mente perturbada, capaz de prescrever instruções para serem executadas após sua morte:


“Primeiramente deverão saber que os impuros não poderão me tocar sem luvas, somente os castos ou os que perderam suas castidades após o casamento e não se envolveram em adultério poderão me tocar sem usar luvas, ou seja, nenhum fornicador ou adúltero poderá ter um contato direto comigo, nem nada que seja impuro poderá tocar em meu sangue, nenhum impuro pode ter contato direto com um virgem sem sua permissão, os que cuidarem de meu sepultamento deverão retirar toda a minha vestimenta, me banhar, me secar e me envolver totalmente despido em um lençol branco que está neste prédio, em uma bolsa que deixei na primeira sala do primeiro andar, após me envolverem neste lençol poderão me colocar em meu caixão. Se possível, quero ser sepultado ao lado da sepultura onde minha mãe dorme. Minha mãe se chama Dicéa Menezes de Oliveira e está sepultada no cemitério Murundu. Preciso de visita de um fiel seguidor de Deus em minha sepultura pelo menos uma vez, preciso que ele ore diante de minha sepultura pedindo o perdão de Deus pelo o que eu fiz rogando para que na sua vinda Jesus me desperte do sono da morte para a vida eterna.”


Não é estranho como alguém pode falar sobre Deus e "pureza sexual" mas ser capaz de matar crianças a adolescentes indefesos numa escola?

Pois digo que, refletindo melhor sobre o que aconteceu, um comportamento deste pode não ser tão estranho.

Meditando sobre a história e os absurdos que acontecem em outras partes do mundo, podemos observar que o fanatismo religioso e político, não importa de qual credo, é capaz de muito mais. É capaz, inclusive, de gerar violência coletiva, levando comunidades e nações a agirem de modo semelhante.

Numa hora como esta é de se esperar que o sentimento de revolta e de comoção tome conta dos telespectadores a ponto de desejarmos a pena de morte e até o fogo do inferno para uma pessoa como era Wellington Menezes de Oliveira. Contudo, até as primeiras horas da manhã de hoje, ninguém jamais imaginaria que aquele rapaz fosse cometer tamanha barbaridade. E como uma criança que ainda estava acordando para ir ao colégio poderia prever que, pouco tempo depois, estaria vivendo uma cena de horror?

Olho para uma situação destas e o que posso fazer no momento é dar meus sentimentos às famílias destas crianças e aos sobreviventes do massacre. Prefiro calar-me quanto a questões sobre pena de morte, se houve responsabilidade omissiva por parte da escola ou se o governo do Sérgio Cabral poderia ter evitado o fato. Parabenizo o sargento Márcio Alves da PM por sua destemida bravura e desejo que os estudantes possam recuperar-se em paz.

domingo, 3 de abril de 2011

A diabólica "teologia" do deputado Marco Feliciano


Recentemente, o deputado e pastor Marco Antônio Feliciano (PSC-SP) envolveu-se numa polêmica que mostrou de vez ao público esclarecido quem ele realmente é. Depois que o deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) ofendeu a Preta Gil numa entrevista, na qual mostrou inequivocamente os seus sentimentos de racismo e de homofobia, Marco Feliciano disse no Twitter que os africanos seriam "descendentes amaldiçoados de Noé".

Quando tomei conhecimento do que o parlamentar falou, fiquei perplexo em verificar que, em pleno século XXI ainda existem pessoas que propagam algo tão absurdo, preconceituoso e desconexo com as Escrituras. Ainda mais tratando-se de um pastor, eleito deputado federal com cerca de 211 mil votos e que comanda um instituto teológico.

O que disse o deputado Marco Feliciano não significou nada novo debaixo do sol, pois trata-se de uma visão teológica bem ultrapassada e que parecia ter caído em desuso há muito tempo. No entanto, foram mesmo os cristãos quem inventaram tal perversão. Sabe-se que a Igreja dos séculos XV a XIX, subserviente aos interesses colonialistas das nações europeias, foi capaz de abrigar umas das mais satânicas "teologias" - a de que os negros seriam descendentes de Cam e que, por causa da maldição de Noé (Gn 9.25-27), eles deveriam ser escravos nas colônias europeias.

De acordo com o texto bíblico, eis que Noé, após o Dilúvio, teria cultivado uvas e, após embriagar-se com o vinho, ficou despido em sua tenda. Então, seu filho Cam, ao saber da nudez do pai, resolveu noticiar o fato a seus dois outros irmãos, Sem e Jafé. Estes, cobrindo seus rostos com uma capa afim de não verem a nudez do pai, vestiram-no andando de costas. Ao despertar-se do estado de embriaguez, Noé amaldiçoou a Canaã, filho de Cam, abençoando a Sem e a Jafé. Canaã seria escravo de Sem:

"Maldito seja Canaã; seja servo dos servos a seus irmãos E ajuntou: Bendito seja o SENHOR, Deus de Sem; e Canaã lhe seja servo. Engrandeça Deus a Jafé, e habite ele nas tendas de Sem; e Canaã lhe seja servo."

Tal profecia, dita pelo ancestral comum de todos os povos que sobreviveram ao Dilúvio, foi o primeiro anúncio de que a posse da terra dos cananeus viria a pertencer aos hebreus, os quais eram descendentes de Sem. E, como se pode observar pela narrativa da Torah, foram os israelitas quem conquistaram a terra prometida a Abraão, o que confirmou a predição de Noé.

Entretanto, conforme Marco Feliciano respondeu à Revista Veja em sua infeliz entrevista, a maldição parece ser aplicada aos negros e ao continente africano, ignorando o sentido profético das palavras bíblicas sobre a herança dos israelitas:


"De Cão, veio (sic) Canaan e outros filhos que povoaram a Etiópia, ou o continente africano. Por isso sobre a África sempre repousam fome, tristeza e guerra de etnias. Alguns facínoras foram levantados lá, como Idi Amim, Jonas Savimbi, além do vírus Ebola, da Aids. O peso da maldição permanece (...) Mas nós também recebemos o gene africano. Por isso, alguns lugares do Brasil são muito pesados. Todas as cidades, especialmente as de beira-mar, que tiveram entrada de escravos." (extraído de http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/deputado-maldicao-africana-tambem-chegou-ao-brasil) - o destaque é meu


Ora, verdade seja dita que não existe maldição nenhuma sobre a África, exceto o repugnante preconceito racial que o mundo europeu e cristão articulou contra aquele continente afim de justificar a exploração de seus povos. Logo, toda esta teologia de botequim trata-se de um preconceito que até nos dias de hoje é alimentado pelos ignorantes e pilantras. Algo que deve receber total repúdio da nação brasileira e de suas instituições, inclusive das igrejas.

Sinceramente, acho que a nação brasileira não pode passar a mão na cabeça desses dois deputados que, lamentavelmente, foram eleitos. As palavras de Marco Feliciano e de Jair Bonsonaro foram altamente preconceituosas e incompatíveis com o Estado Democrático de Direito em que vivemos. Ao dizer que, "nós também recebemos o gene africano", Marco Feliciano fez uma explícia referência ao negros como sendo portadores de uma maldição, o que teve clara conotação depreciativa de racismo e, portanto, enseja a perda do seu mandato bem como a instauração de processo criminal.

Meu desejo é que os crentes evangélicos acordem o quanto é tempo e vejam quem são os lobos que andam se aproveitando da ingenuidade alheia. E isto vale não só para os evangélicos como para todo o povo brasileiro.


OBS: A imagem acima foi extraída do site do próprio Deputado Marco Feliciano em http://www.marcofeliciano.com.br/site/?page=materia&MA_ID_MOD=1168

sexta-feira, 1 de abril de 2011

O que temos feito com o nosso descanso semanal?


“Lembra-te do dia de sábado para santificá-lo. Trabalharás seis dias e neles farás todos os teus trabalhos, mas o sétimo dia é sábado dedicado ao SENHOR, o teu Deus. Nesse dia não farás trabalho algum, nem tu, nem teus filhos ou filhas, nem teus servos ou servas, nem teus animais, nem os estrangeiros que moram em tuas cidades. Pois em seis dias o SENHOR fez os céus e a terra, o mar e tudo o que neles existe, mas no sétimo dia descansou. Portanto, o SENHOR abençoou o sétimo dia e o santificou.” (Êxodo 20.8-11; Nova Versão Internacional – NVI)


Nós brasileiros temos vivido estressadamente (somos o segundo país pais estressado mo mundo) e cometido um grave erro em relação à vida. Trata-se do desrespeito praticado contra o repouso semanal, o qual chega a ser quase totalmente ignorado pelo comércio nas semanas que antecedem o Natal onde inúmeras lojas abrem de domingo a domingo no mês de dezembro.

Para o povo israelita, zelosos de suas tradições milenares, o sábado é considerado um dia sagrado conforme prescrito na lei mosaica - a Torah. Trata-se do Shabbat, o qual é reverenciado mesmo pelos judeus mais liberais em que os rabinos extraem profundos mandamentos baseados no 4º mandamento do Decálogo. Só que, infelizmente, a guarda deste preceito bíblico vem sendo desprezada pela maioria dos povos ocidentais.

A palavra hebraica Shabbat tem a ver com os verbos cessar ou descansar do nosso idioma. Surge pela primeira vez em Shemot (Êxodo) como um dia de repouso semanal consagrado a Deus, o que confirma a tradição de Bereshit (Gênesis) de que, no sétimo dia da criação, o Eterno descansou de toda a sua obra. E, deste modo, a instrução da Torah orienta ao homem que igualmente observe a mesma conduta, cessando com todas as atividades que sejam incompatíveis com este repouso no final de uma semana.

Ao contrário do que muitos cristãos pensam, Jesus não revogou o 4º mandamento. Sendo judeu, ele observava os preceitos da Torah, baseava seus ensinos nas Escrituras hebraicas e viveu a instrução divina em sua essência mais do que qualquer outro homem. Pois, ao curar aos sábados e ter permitido que os seus discípulos praticassem uma colheita de subsistência sem fins laborativos naquele dia, o Messias mostrou aos escribas legalistas de seu tempo que a aplicação de um mandamento não pode ser contrária ao princípio que rege a vida.


“O sábado foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do sábado. Assim, pois, o Filho do homem é Senhor até mesmo do sábado”. (Marcos 2.27; NVI)

“O que é permitido fazer no sábado: o bem ou o mal, salvar a vida ou matar?” (Marcos 3.4; NVI)

“Qual de vocês, se tiver uma ovelha e ela cair num buraco no sábado, não irá pegá-la e tirá-la de lá? Quanto mais vale um homem do que uma ovelha! Portanto, é permitido fazer o bem no sábado” (Mateus 12.11-12; NVI)

“Cada um de vocês não desamarra no sábado o seu boi ou jumento do estábulo e o leva para dar-lhe água? Então, esta mulher, uma filha de Abraão a quem Satanás mantinha presa por dezoito longos anos, não deveria no dia de sábado ser liberta daquilo que a prendia?” (Lucas 13.15-16; NVI)


Tais palavras de Jesus, diferentemente do que a maioria dos cristãos desconhecem, estavam de acordo com os princípios rabínicos posteriores em que a salvação de vidas deve se sobrepor ao sábado. Ou seja, Jesus expressou uma compreensão aberta sobre o 4º mandamento que já se encontrava em construção em seu século, provavelmente entre os fariseus mais liberais da escola de Hillel. Na certa, Jesus e outros rabis contemporâneos a ele estavam revendo a visão rigorosa que passou a existir no judaísmo pós-exílico a respeito da guarda do sábado e que ficou mais acentuada na época da dominação helenista sobre a Palestina. Tanto é que os escritos judaicos posteriores apresentam uma semelhança com o ensino de Jesus:


“O sábado vos foi entregue, e não vós ao sábado” (Mekh. Exod. 31.14)

“Se um homem tem uma dor de garganta, eles podem pingar remédio na sua boca no sábado, pois há dúvida de que sua vida está em perigo, isto se sobrepõe ao Sabá” (nYoma 8.6)


Quem lê a Torah irrefletidamente fica com a falsa impressão de que o Shabbat teria sido imposto aos israelitas com uma rigidez fechada. Porém, nenhum mandamento é para ser compreendido ao pé da letra como teriam feito os fariseus mais legalistas dos tempos de Jesus, indo contra o sentido da “instrução”, vocábulo este que melhor traduz para o português o significado de Torah..

O Shabbat, como todo mandamento, tem o objetivo de promover a vida. Com o descanso semanal, o homem retoma o seu alento para prosseguir na peregrinação que faz nesta terra, renovando suas forças. E, como se pode ver pela história, o descanso semanal tornou-se tão importante que influenciou a legislação trabalhista de vários países no mundo, tornando-se um direito inegociável do trabalhador ainda que flexibilizado na atualidade quanto ao dia e determinadas épocas do ano (justamente no Natal onde se comemora o nascimento do Messias que é o senhor do sábado).

Contudo, a crítica que quero focar neste artigo relaciona-se mais especificamente à maneira como lidamos com o nosso descanso semanal. Isto é, sobre a qualidade do nosso repouso e a sua relação com a instrução bíblica do Shabbat.

O verbo cessar neste contexto é sinônimo de parar de vez com as atividades rotineiras durante o tempo do repouso, sem cultivar preocupações e se abstendo de coisas estressantes. Significa também que, durante o Shabbat você não vai substituir a ausência do trabalho por coisas que perturbam a mente ou que provocam mais fadigas durante o lazer.

A definição do que seria uma brincadeira estressante pode variar conforme a rotina de cada um. Para alguém que trabalha diariamente diante da tela de um computador, não me parece adequado passar o final de semana inteiro na internet. Do mesmo modo, podemos dizer acerca de quem gasta boa parte de suas horas no trânsito em função de suas obrigações laborais e justo no dia de descanso resolve distrair-se tirando o carro da garagem para passear.

Desde 2008, tenho meditado acerca do 4º mandamento e obtido experiências bem positivas nas vezes em que decidi pô-lo em prática. E, com o tempo, acabei criando uma nova rotina em meus sábados, o que tem me proporcionado bem estar, embora eu ainda não tenha alcançado o estado ideal de repouso que o Shabbat propõe. Então, como tenho os finais de semana descomprometidos o trabalho, inicio o meu descanso da mesma maneira que os judeus e adventistas fazem. Respeitando o dia bíblico, vou parando com minhas atividades lá pelo por do sol da sexta-feira e evito compromissos até o por do sol de sábado, o que me proporciona uma renovação das energias.

Mas qual seria a utilidade de se considerar o dia bíblico que começava com o por do sol e não à meia noite?

Para um ecologista isto tem muito a ver. Pois, nos tempos antigos, a hora não era medida em minuto, mas sim pela duração do período em que a terra recebe a luz solar, variando conforme a estação do ano. Daí, dependendo da época e da distância do lugar em relação à linha do Equador, a hora poderia ter mais ou menos do que os 60 minutos fictícios, de modo que, no verão, as pessoas trabalhavam mais na lavoura do que no inverno. Porém, quando chegava a noite, não tinha mais como alguém permanecer no campo ou viajar e a família reunia-se para beber chá envolta da fogueira. Era o tempo orgânico.

Ora, se o Shabbat judaico inicia-se no por do sol da sexta-feira, logo o trabalhador dos tempos bíblicos acumulava duas noites de descanso e só retornava a laborar na manhã do primeiro dia da semana. Então, a despedida do Shabbat, feita no sábado à noite, passou a ter um significado todo especial que os judeus chamam de Havdalah, o qual deve é comemorado com muita alegria na crença de que bençãos são liberadas em tal momento.


“Se desviares o pé de profanar o sábado e de cuidar dos teus próprios interesses no meu santo dia; se chamares ao sábado deleitoso e santo dia do SENHOR, digno de honra, e o honrares não seguindo os teus caminhos, não pretendendo fazer a tua própria vontade, nem falando palavras vãs, então, te deleitarás no SENHOR. Eu te farei cavalgar sobre os altos da terra e te sustentarei com a herança de Jacó, teu pai, porque a boca do SENHOR o disse.” (Isaías 58.13-14; ARA)


Como disse antes, Jesus não revogou a Torah como ele mesmo disse em Mateus 5.17-20, o que deixa bem claro que o Shabbat não foi abolido, mas sim interpretado em harmonia com a vida. Tal como todos os outros do Decálogo, o 4º mandamento deve ser observado sem nenhum legalismo como se os costumes tivessem que virar uma tradição inflexível, servindo o sábado de motivo para que a pessoa venha a se omitir de fazer o bem ao seu próximo em caso de necessidade ou mesmo de trabalhar caso não tenha outra opção, pois imagine o que seria dos serviços essenciais e emergenciais se, nos dias de hoje, todos parassem no mesmo dia da semana. Então, até o socorro espiritual é válido aos sábados. Pois, afinal, todo mandamento deve relacionar-se com o amor que é o resumo e a essência da Torah.

Aproveite que hoje é sexta e planeje um deleitoso descanso semanal!


OBS: A ilustração acima a uma obra do século XIV da Espanha referindo-se ao Havdalah praticado pelos judeus. As citações da literatura rabínica foram extraídas do livro "O Autêntico Evangelho de Jesus" de Geza Vermes. A palavra Havdalah, utilizada para referir-se à cerimônia de despedida do Shabbat significa separação (distinção) entre o santo e o profano.