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quarta-feira, 22 de setembro de 2010

O amor de uma grande família

- Muito bem, meu amigo. Do que é que vamos tratar hoje?
- Que tal falarmos de família?
- Família. - Refletiu por um instante. - Bom, a minha você está vendo nesta casa. - Indicou com a cabeça as fotografias nas estantes: ele, quando criança, com a avó; ele, quando rapaz, com o irmão, David; ele com a mulher, Charlotte; com os dois filhos, Rob, jornalista em Tóquio, e Jon, especialista em computador em Boston. - À luz de nossas conversas nestas últimas semanas, a família ganhou mais importância.
- A verdade é que não existe base - continuou -, não existe um fundamento sólido no qual as pessoas possam se apoiar hoje em dia, a não ser a família. Depois que adoeci, isso ficou claro para mim. Quem não tem o apoio, o amor, os cuidados de uma família, não tem muito com que contar. O amor é supremamente importante. Como disse o nosso grande poeta, Auden, "Amem-se uns aos outros ou pereçam".
- Amem-se uns aos outros ou pereçam. - Tomei nota. - Auden disse isso?
- Amem-se uns aos outros ou pereçam - Morrie repetiu. - É bom, não acha? E é tão verdadeiro. Sem amor, somos pássaros de asas quebradas. Se eu fosse divorciado, ou vivesse sozinho, ou não tivesse filhos, esta doença seria muito mais difícil de suportar. Nem sei se conseguiria. Claro que receberia visitas, amigos, colegas, mas não seria o mesmo que ter pessoas que não vão embora. Não seria o mesmo que ter uma pessoa atenta tomando conta da gente, cuidando o tempo todo.
- Isso é parte do que significa família - prosseguiu. - Não é só amor, é também fazer os outros saberem que tem alguém cuidando deles. Foi disso que senti tanta falta quando minha mãe morreu, falta do que eu chamo de "segurança espiritual", de saber que existe uma família cuidando sempre da gente. Nada substitui isso. Nem dinheiro. Nem fama. - Nesse ponto ele olhou para mim e acrescentou: - Nem trabalho.
Constituir uma família era um dos itens da minha listinha das coisas que agente quer alcançar antes que seja tarde. Comentei com Morrie o dilema da minha geração: ter ou não ter filhos, que geralmente considerávamos como entraves, como forças que nos empurram para o papel de "pai" que não queremos assumir. Admiti abrigar um desses sentimentos.
Mas, quando olhei para o meu velho professor, imaginei como suportaria o vazio se estivesse na situação dele, nas portas da morte e sem família, sem filhos. Ele criou seus dois filhos e fez deles entes amorosos e dedicados que, como o pai, não se envergonhavam de mostrar afeto. Se Morrie quisesse, os filhos largariam tudo para passar cada minuto dos meses derradeiros de seu pai ao lado dele. Mas Morrie não queria isso.
- Não interrompam suas vidas - disse-lhes ele. - Se interromperem, essa doença terá arruinado três pessoas, em vez de uma.
Assim, mesmo estando à beira da morte, ele mostrou respeito pela vida dos filhos. Não admira que, quando eles estavam com o pai, havia entre os três muita afeição, muitos beijos, muitas piadas, muito contato físico, muito enlaçar de mãos.
- Sempre que me perguntam sobre ter filhos ou não ter filhos, nunca digo o que devem fazer - disse Morrie olhando uma fotografia do filho mais velho. - Só digo que não existe emoção comparável à de ter filhos. Nada substitui essa experiência. Não se pode experimentá-la com um amigo. Não se pode experimentá-la com uma amante. Quem quiser experimentar a emoção de assumir responsabilidade total por outro ser humano, e aprender a se dedicar no grau mais alto, precisa ter filhos.

(trecho do livro "A última grande lição: o sentido da vida de Mitch Albom, traduzido por José J. Veiga e publicado no Brasil pela editora Sextante)


O diálogo transcrito acima conta a experiência real de um homem que, no final de sua vida, podia reconhecer a importância dos relacionamentos familiares.

Infelizmente, nem todas as famílias são unidas. Muitos pais, ao envelhecerem, são esquecidos por seus filhos ou colocados num asilo onde passam o resto de seus dias no meio de pessoas estranhas que nem sempre estarão dispostas a amá-los.

Por outro lado, embora isto não seja uma regra absoluta, muitos recebem dos filhos a retribuição daquilo que semearam nas vidas de seus descendentes. Pais que sempre foram incompreensivos, abandonaram suas crianças ou agiram com implicância (há sogros que destroem o casamento dos filhos), colhem na proporção que plantaram de modo que só a prática do amor pode por fim ao processo pecaminoso dentro das relações humanas.

Quando olhamos para as boas famílias nas quais há amor entre os seus entes, nem sempre somos capazes de ver a aplicação de princípios básicos de vida nas relações entre as pessoas. Porém, a partir do momento em que passamos a meditar no harmônico entrelaçamento que há entre a sequência de bons comportamentos, podemos também entender que a família é um plano de Deus para a humanidade.

Para o comunismo a família é vista como uma "instituição burguesa" contrária ao ideal de igualdade entre os homens, motivo pelo qual algumas revoluções socialistas do século XX chegaram a retirar os filhos do convívio dos pais para educá-los dentro dos valores do marxismo através de frias instituições estatais. Porém, o maior erro desta concepção esquerdista foi ter visto a família como uma instituição social integrante do modo de produção capitalista.

O relato bíblico sobre a criação de Adão e Eva, em que todos os seres humanos descendem de um só casal, nutre a ideia de que todos procedemos de uma só família. Logo, se não fosse pelo pecado, o mundo inteiro poderia ser hoje essa grande família em que todos se ajudariam.

Ainda no Livro de Gênesis, assistimos a humanidade se dividindo por várias vezes. Primeiramente foi Caim quem se apartou dos demais depois do assassinato de seu irmão Abel, afastando-se da presença de Deus (Gn 4.16). Depois do dilúvio, a humanidade manteve-se unida para um propósito ruim e foi dividida em diversas nações, passando a falar idiomas diferentes. Foi então que Deus resolveu criar um povo santo para si - os israelitas - que fosse capaz de amar.

Curiosamente, nem a nação de Israel, que recebeu a Torá de Moisés, conseguiu ser essa família unida. Além do reino se dividir em dois com a morte de Salomão, os israelitas viveram em condições de desigualdade durante quase todo o tempo, desamparando órfãos e viúvas, oprimindo o pobre e o estrangeiro, praticando a usura, a escravidão e a injustiça, conforme denunciaram os profetas.

Quando a Igreja surge na época apostólica, aquela comunidade de discípulos de Jesus formada em Jerusalém conseguiu, por certo tempo, viver como uma verdadeira família (Atos 2.42-47; 4.32-35). Todos tinham um só coração e se achavam unidos com um propósito positivo - amar pessoas. Viviam o Evangelho com sinceridade a ponto de se desfazerem de seus bens para distribuírem o produto da venda entre os necessitados. Anos depois, quando novas comunidades surgiram pelas diversas nações existentes no mundo romano, nem a distância foi capaz de segurar este amor como se vê nas ajudas que as igrejas faziam entre si nos tempos de dificuldades, enviando doações de um continente ao outro em épocas de fome. Inclusive, tanto o livro de Atos como algumas epístolas de Paulo falam sobre a ajuda que eram recolhidas em favor dos irmãos que viviam na província da Judéia.

Não acho que a Igreja de Atos fosse perfeita. Tratava-se de uma Igreja formada por gente igual a nós, pois todos eles eram pessoas sujeitas às mesmas tentações e falhas de caráter. As lideranças também se desentendiam e dentro das comunidades surgiam falsos mestres, hereges, homens gananciosos e adúlteros que resistiam ao arrependimento. Nas cartas às sete igrejas de Apocalipse, podemos perceber claramente que apenas duas não foram reprovadas por Jesus.

Para não perder o foco deste texto, dispenso comentários sobre os crimes hediondos praticados pelos que se diziam cristãos no decorrer da História, os quais não frustram o ideal de ser a Igreja a grande família de Deus. O sonho de Jesus de construir o Reino de Deus através de uma Igreja que se ama permanece vivo, pois basta que estejamos dispostos a nos amar de verdade como Cristo nos amou.

Neste sentido, acredito que a nossa família natural serve apenas como um símbolo do projeto de Deus para a humanidade. O primeiro sentimento que une os pais aos filhos é a afeição que se baseia num instinto de proteção da cria. E, no caso do amor entre os cônjuges, também o primeiro sentimento é a atração erótica que a mulher faz despertar no homem. Só que estas duas manifestações da emoção humana não superam o ágape que é o termo grego usado para o amor bíblico, algo que está além dos sentimentos pois se baseia numa escolha espiritual de querer amar o próximo incondicionalmente a exemplo do bom samaritano da parábola de Jesus que nem conhecia o moribundo caído na estrada.

"We must love one another or die" (Devemos amar uns aos outros ou morrer), disse o inglês Wystan Hugh Auden em seu poema "September 1, 1939" citado Mitch Albom em seu diálogo. Porém, se retirarmos a conjunção "ou" substituindo-a por "e", a frase certamente ficaria deste jeito: AMEMOS UNS AOS OUTROS E VIVEREMOS!

Sem dúvida que se o mundo inteiro resolver se amar (não se aprende o maior dos mandamentos do dia para a noite), conseguiríamos projetar uma imagem do Paraíso na Terra. Toda a humanidade poderia dormir com portas abertas. Viveríamos sem muros como uma única família, compartilhando nossos bens, talentos e conhecimento em benefício uns dos outros. Com isto, os bancos iriam à falência, existiria menos exploração do trabalho alheio e os policiais, bem como os soldados, precisariam ser aproveitados em outro setor do funcionalismo público.

Não acredito que, enquanto o amor ainda conflitar com o ódio toda a humanidade se tornará esta tão sonhada família. Acredito sim que a Igreja poderá refletir uma imagem desse grandioso amor num planeta onde ainda reina o pecado, cumprindo imperfeitamente a sua função de "sal da terra" e "luz do mundo". Então, consequentemente, o mundo poderá receber a influência desse amor cristão e conhecer a verdadeira Vida.

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